PÁGINAS ESCOLHIDAS
Do
livro À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)
SOLILÓQUIO
O que mais me incomoda em
morrer é a primeira noite depois do enterro, é ter que dormir cercado de mortos
que eu não conheço, sem uma companheira que me cutuque as costas para eu parar
de roncar. Na verdade, me incomoda também não mais roncar.
Agora, apesar da vizinhança silenciosa e insípida, o que eu vou gostar de fato
é a esperada escuridão e a ansiada tranquilidade dentro do silêncio; nada de
portas batendo nem de gonzos gemendo, nada de cachorros latindo nem o prolongado
pio da coruja para atrapalhar o meu sono profundo aqui nesta caixa almofadada de
primeira categoria qual leito acetinado de um grande hotel cinco estrelas,
fruto da contribuição dos amigos, dada a exiguidade de fundos dos meus bolsos
sem fundo por ocasião do passamento, que no máximo dariam para eu me acomodar
em um caixote de bacalhau fosse a escolha feita a moto próprio.
Me aborrece também ter que ficar calado à vista de tanta insanidade, agora
parece que vejo melhor os falsos sorrisos e as intenções dúbias, se eu
estivesse do lado de fora, ao lado deles, talvez estivesse também falando mal
de mim com um sorriso de escárnio estampado na face hipócrita.
Pensando bem, ser enterrado assim tem mais graça do que ser simplesmente
cremado como um pão que foi esquecido dentro do forno e depois ter as cinzas
atiradas num rio como restos de um churrasco de verão.
Enterrado assim a gente tem mais dignidade e pode finalmente usar aquele terno
grosso de lã, apesar de todo o calor, tendo como plateia a turba que nos cerca
qual uma alcateia faminta para ter a certeza de que realmente fomos desta para
melhor – ou para pior – e que nunca mais voltará a nos ver (embora esteja escrito que nos veremos novamente
muito antes do que pensam os ímpios e céticos senhores).
(Reflexões de um defunto no dia do seu embarque para a eternidade)
Nenhum comentário:
Postar um comentário