PÁGINAS
ESCOLHIDAS
De um livro de contos que ainda não foi publicado
(Augusto Pellegrini)
EL
CAPITÁN
16 de julho, oito e meia da noite.
A brisa sopra, vinda da orla, e acalma o
calor do dia que até pouco se refletia com intensidade nas calçadas, nas ruas forradas
de paralelepípedos e nos edifícios comerciais, a esta altura desertos.
A avenida beirando o mar ainda guarda
alguns noctívagos soturnos que se arrastam e se confundem como garatujas
solitárias.
O caudilho mulato, com a expressão
arrogante dos vencedores, vaga solitário pela cidade e se embrenha pelas ruas
secundárias desertas, adornadas por luzes fracas dependuradas em negros postes
metálicos cujas bases são fixadas em capitéis trabalhados na época da
proclamação da República. O seu rosto não traduz alegria, apenas a empáfia
daqueles que se sentem superiores.
Nem uma alma nas ruas, nem um cão vadio.
Ele entra num bar, um dos poucos que
ainda se mantém abertos, pede uma cerveja e observa a cara desconsolada do
atendente atrás do balcão de mármore e os olhos vermelhos de um homem com a
barba por fazer, que a seu lado olha opacamente através de uma taça de
conhaque.
Preso à parede, um velho ventilador
procura aliviar o ar abafado com cheiro de cerveja velha.
O caudilho lembrou-se da algazarra de
horas atrás, da manhã agitada com o alarido das buzinas, dos foguetes espocando
ao sol a pino e do papel picado que agora o vento frio levanta do chão como uma
vassoura invisível. O clima agora é lúgubre, e a noite se reveste de tantas
lágrimas que El Capitán Obdúlio
Varela de repente se lamentou por haver conquistado aquele título histórico e por
haver zombado dos derrotados naquela tarde de sol.
O Rio amanhecera sorrindo, e o Redentor,
já com os braços abertos sobre a Guanabara, parecia saudar prematuramente o Brasil
campeão do mundo.
Afinal, depois de despachar adversários
temíveis com uma profusão de gols, o Brasil estava de bem com a vida. O futebol
era exuberante, a inflação era irrisória, gozávamos da total confiança do
presidente Dutra e da imprensa ufanista, e bastava um simples empate contra os
inexpressivos uruguaios – um time bastante brioso, de acordo com o dicionário
esportivo da época, mas de técnica um tanto quanto questionável – para
ocuparmos um lugar na história.
Veio a tarde de sol, e o estádio novinho,
cheirando a tinta, inchava no seu bojo para conter aquelas mais de duzentas mil
pessoas em festa, enquanto milhões ouviam pelo rádio, que a televisão ainda não
havia chegado por ali.
Ambulantes, pracinhas do exército,
sujeitos engravatados com bigodes conspícuos, mulheres com penteado de rolo,
motoristas de ônibus, funcionários públicos, figuras exóticas sem dentes, todos
comungando um só pensamento, uma só alegria que aquele negro desgraçado haveria
de surrupiar.
O jogo começou num clima de carnaval. O time
brasileiro estava arrasador, e um gol anotado logo no início do segundo tempo
prenunciava as delícias de um chope noturno em Copacabana com a faixa de
campeão, tendo o samba da Portela – “vem
ver quem ainda não viu as riquezas do nosso Brasil” – como fundo musical.
Mas com o passar do tempo o céu nublou.
Schiaffino anotou o empate, provocando
murmúrios aflitivos na plateia, e aí veio Ghiggia, matando Barbosa com um tiro cruzado
certeiro, e o murmúrio se transformou no mais pesado silêncio coletivo de que
se tem notícia.
Tudo foi diminuindo no time brasileiro –
a força de um, a raça de outro, a imponência de todos – e as pernas foram se
acovardando pela cancha, enquanto o tempo corria célere em direção ao infame
destino.
Acabou o jogo e começaram as lágrimas,
os uruguaios festejando ali, bem na frente do nosso nariz, erguendo o pequeno
troféu alado, que viajaria para Montevidéu de cara amarrada, ele, que teria
ficado em nossas terras, tivessem sido os deuses do futebol mais justos.
A noite não estava tão fria, e o céu de
inverno até que estava estrelado. A aragem fresca soprava vinda do mar e a luz
da lua empalidecia a imensa areia branca.
O mar cantava no seu sobe e desce como
se fosse uma sereia seduzindo tudo o que se encontrasse ao redor.
O caudilho sentiu o impacto da tragédia
bem dentro da alma e estremeceu ligeiramente diante do copo de cerveja, que
sabia amarga.
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