quinta-feira, 3 de abril de 2014


 
 
EU E A MÚSICA – UM PIANO NO FIM DA TARDE

José Eduardo Coutinho Maia era meu conhecido de infância. Éramos vizinhos, mas não necessariamente amigos, pois não mantínhamos maiores contatos nessa época. Seus pais lhe impunham uma educação excessivamente vitoriana e proibiam a ele e a seu irmão de saírem à rua para brincar e se enturmar com os garotos vizinhos. A própria família, classe média alta, não se entrosava muito com a vizinhança.
A condição financeira da família de Eduardo parecia muito estável, pois eles se davam ao luxo de ter uma governanta exclusiva para as crianças e um Chevrolet “do ano” que era obrigado a estacionar na rua, pois a casa, embora grande, não tinha garage, fato mais ou menos comum a boa parte das casas do bairro.
Na verdade, Eduardo e eu começamos a trocar ideias apenas depois da nossa maioridade, muitas vezes ao lado de uma boa caneca de chope numa churrascaria chamada Forte Apache ou num bar chamado A Gloriosa, que era o point da moçada de então.
Eduardo gostava de cinema e fotografia, e eu já naquela época me interessava por escrever. Este foi o principal motivo da nossa aproximação, e as nossas conversas geralmente versavam sobre a tal da “ideia na cabeça e uma câmera na mão” decupada por Glauber Rocha, o realismo italiano, e a invasão da nouvelle vague e do cinema novo. Discutíamos de Eisenstein a Griffith e de Chaplin a Orson Welles, e eu cheguei a comprar livros sobre técnicas de direção e edição para melhor entender o assunto.
Daí nasceu a feliz ideia de fazermos um filme – chegamos de fato a fazer vários filmetes, que se perderam no tempo – onde Eduardo cuidaria da parte cinematográfica e eu ficaria com o roteiro e a parte cênica.
O filme, rodado no velho sistema dezesseis milímetros, era chamado “A Busca e A Fuga”, baseado num conto-crônica que eu havia escrito alguns anos antes, e versava sobre a situação incômoda de um cidadão que não conseguia se ajustar à sociedade em que vivia.
O tema podia ser pretensioso, mas o filme, mesmo modesto, chegou a participar de alguns festivais de cinema amador, onde foi objeto de elogios precipitados dos amigos, de aplausos convenientes dos entusiastas e de comentários desairosos dos críticos mais acerbados.
Como cenário para uma determinada parte da filmagem, escolhemos o pavilhão da Bienal do Parque Ibirapuera, que havia sido inaugurado em São Paulo em 1954 e estava vazio, recebendo merecidos reparos naquele ano de 1967.
Suas características arquitetônicas com vãos livres enormes sem paredes internas, nascidas do modernismo de Oscar Niemayer, e o descortino de um horizonte arborizado naquele fim de tarde dariam a medida exata do que precisávamos em termos de enquadramento para provocar a sensação de solidão e fuga.
Para lá nos dirigimos eu com os meus projetos, Eduardo com seu equipamento, Sergio Martire – encarregado da fotografia – com seus medidores de intensidade de luz e seus conhecimentos técnicos, Élio Lammardo, uma espécie de assistente geral com seu entusiasmo e incentivo, e o nosso ator Luís Carlos Gertel, um sujeito com cara de galã que era repórter da Radio Bandeirantes.
Subimos para o vão aberto do segundo andar e começamos a caminhar pelo piso deserto procurando o ponto mais conveniente para que Luís Carlos começasse a atuar. A vastidão e o silêncio do cenário ajudavam a criar o clima Felliniano que desejávamos.
No meio de tanta brancura avistamos como que surgindo do nada um piano negro com a asa aberta, emitindo acordes jazzísticos formidáveis. O som e a imagem que chegavam até nós, ao invés de quebrar o encantamento da cena, trouxe uma aura de imponderabilidade, como se todo o ambiente estivesse flutuando.
Caminhei em direção ao piano, com o som do jazz agora enchendo o ar, e num instante reconheci “How About You?” (Burton Lane e Ralph Freed), e por trás do instrumento ninguém menos do que Dick Farney, que também estava ali para uma gravação e naquele instante aquecia os dedos – conforme ele nos confidenciou.
Ele recebeu nossa intromissão com um semblante sorridente, a expressão levemente enigmática, uma extensão dos seus shows de jazz aos quais eu me habituara a assistir em algumas noites de quarta-feira no auditório de A Folha de São Paulo na Rua Barão de Limeira.
A sua presença solitária naquela hora e naquele lugar parecia estranhamente etérea.
Farney não perguntou o que fazíamos no seu território – a parafernália que trazíamos em mãos acho que era mais que suficiente para qualquer bom entendedor – mas isto não nos intimidou e logo travamos uma rápida conversa com ele.
Afinal, estávamos frente a frente com um dos músicos que ajudaram a escrever a história da música brasileira nos Estados Unidos com sua voz e seu piano – além de “How About You” Farney gravara standards famosos como “She’s Funny That Way” (Richard A.Whiting e Neil Moret), “These Foolish Things” (Jack Strachey, Holt Marvell e Harry Link), “What’s New?
(Johnny Burke e Bob Haggard) e “You Go To My Head” (J.Fred Coots e Haven Gillespie). A gravação de Farney feita nos Estados Unidos em 1947 para a música “Tenderly” (Walter Gross e Jack Lawrence) acontecera antes das versões de Sinatra e Nat “King”Cole.  
Tudo isto sem prejuízo da discografia nacional do final da década de 1940 e de toda a década de 1950, com gravações que serviram de base para o surgimento da bossa-nova na década seguinte – “Perdido De Amor” (Luiz Bonfá), “Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Nick Bar” (Garoto e José Vasconcelos), “A Saudade Mata A Gente” (Antônio Almeida e João de Barro), “Um Cantinho E Você” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Se O Tempo Entendesse” (Marino Pinto e Mario Rossi), “Somos Dois” (Armando Cavalcanti, Luiz Antônio e Klécius Caldas) e outras tantas maravilhas.   
A nossa filmagem se deu em um ponto distante de onde estava Dick Farney, mas não pude deixar de ficar estático durante alguns minutos me inebriando com o som daquele piano no fim da tarde.
E aquele som – “I like New York in June, how about you?... – acompanhou o nosso trabalho como uma benfazeja e inesperada trilha sonora.

 

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