sábado, 1 de outubro de 2016





FEITIÇO E O FEITICEIRO

O ano era 1927, e o local era o Estádio de São Januário, o maior e mais moderno da América Latina.
Estava em disputa a final do Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, e o Rio de Janeiro, que era a sede do Distrito Federal, jogava contra São Paulo.
As duas seleções alinhavam jogadores de grande prestígio na época, como Floriano, Fortes, Pascoal, Nilo e Teófilo pelo lado carioca e Grané, Amilcar, Petronilho, Feitiço e Heitor pelo lado paulista. 
O jogo estava empatado em 1 x 1 quando, aos 29 minutos do segundo tempo o árbitro Ari Amarante marcou um pênalti a favor dos cariocas, num lance que gerou muita discussão.
A bola teria sido interceptada com o braço pelo zagueiro Bianco, mas os paulistas reclamaram que a bola teria batido no peito. Se hoje, em plena era da tecnologia, com o auxílio do replay, às vezes fica difícil chegar a uma conclusão, imagine então naquele tempo.
Assim, não temos uma informação concreta se o árbitro agiu corretamente, se foi mais uma arbitragem caseira ou se simplesmente houve apenas um erro, mas a confusão cresceu como sempre cresce em ocasiões como essa.
Os paulistas ficaram indignados e resolveram complicar as coisas. A bola, colocada e recolocada sobre a marca penal, era chutada para longe pelos paulistas para impedir a cobrança, mas o árbitro não expulsou ninguém. Na confusão que se estabeleceu, a partida ficou paralisada por mais de meia hora, gerando grande desconforto porque na tribuna de honra estava o Presidente da República, Washington Luís.
Como o árbitro se mostrava inflexível e a polícia já começava a tomar algumas providências não muito pacíficas, os paulistas, liderados pelo centroavante Feitiço, se retiraram de campo.
Da tribuna, o Presidente reclamou dos incidentes e deu ordens para que os jogadores retornassem e que a partida fosse reiniciada imediatamente. Ao ser notificado no vestiário, Feitiço proferiu uma frase que se tornou lapidar: “Diga ao Presidente que ele pode mandar no país, mas na seleção paulista quem manda somos nós!”. Há quem diga que o autor da frase teria sido o capitão Amílcar, mas de qualquer forma Feitiço, uma espécie de Romário da época, ficou com o crédito pela irreverência.
Com apenas a seleção carioca em campo e a meta vazia, o pênalti foi cobrado por Fortes, que apesar do nome deu um chute fraco no meio do gol, fazendo 2x1 e dando o título para a seleção da casa.
Após o jogo, a CBD informou a Guilherme Gonçalves, presidente do Santos e da APEA – Associação Paulista de Esportes Atléticos, que Feitiço, Grané e o goleiro Tuffy estavam eliminados do futebol. Um ano depois eles foram anistiados, juntos com outros que haviam mais tarde tido o mesmo destino.
Luís Macedo Matoso era o nome do jogador Feitiço, apelido dado por uma jovem admiradora devido à magia com que ele tratava a bola. Ele era forte no cabeceio e no chute “de bico”, artilheiro nato e recordista mundial pelo Santos como participante de um ataque que fez cem gols em dezesseis partidas (Osmar, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista) com a impensável média de 6,25 gols por jogo no mesmo ano de 1927.
Esta epopeia de São Januário poderia ter ficado restrita em si mesma, mas teve um desdobramento político inesperado que precipitou uma forte dissidência entre o futebol de São Paulo e do Rio de Janeiro, culminando com o rompimento que iria deixar os jogadores paulistas fora da seleção que disputaria a Copa do Mundo de 1930 no Uruguai – exceção feita a Araken Patusca, que estava em litígio com o Santos e foi inscrito como jogador do Flamengo.  
Aparentemente, Washington Luís, mais preocupado com as lutas palacianas, não deu importância maior ao episódio (acabou deposto em 1930 pelas forças político-militares comandadas por Getúlio Vargas, três meses depois do Brasil ser eliminado da Copa).

(Artigo publicado no caderno de esportes do jornal O Imparcial de 30/09/2016)


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