O PORCO
“Mas então, o que a gente deve fazer
para ganhar a questão?”
“O que tinha que ser feito já foi feito,
Radamés. Entramos com a petição dentro do prazo, anexamos as certidões, fizemos
a exposição de motivos, tudo como manda o figurino. A primeira audiência já foi
realizada, já foram ouvidas as testemunhas, e o caso deve chegar agora ao seu
final.”
“Mesmo assim, eu preciso ter certeza de
que tudo vai dar certo, doutor...”
“Tudo está sendo encaminhado da maneira
correta, Radamés. Estamos agindo de acordo com o bom senso e com as leis do
Direito.”
“Mas o advogado do Vivaldo deve estar
também fazendo a mesma coisa, assim a gente só tem cinqüenta por cento de
chance de ganhar...”
“...nem tanto, Radamés, nem tanto...”
Radamés se pôs a pensar se este “nem tanto”
se referia à capacidade do advogado do Vivaldo ou se (com uma crescente
preocupação) ao percentual estimado para vencer a causa.
“Quem vai julgar o caso, dar a palavra
final?”
“ O juiz já está indicado, Radamés, é o
doutor Pompílio de Taques, um grande juiz, Radamés, um grande juiz!” –
disse o advogado enquanto cofiava a
barba rala que se espalhava pela papada do queixo.
“É um daqueles sérios, da velha guarda?”
“Incorruptível, Radamés, incorruptível!
Julga os casos com a máxima isenção e se assenta exclusivamente nos ditames do
Direito Romano e na sua sapiência jurídica para tomar suas decisões, Radamés.”
Radamés não concordava com a verborragia
desmedida do advogado.
“Ah, doutor, não existe ninguém
incorruptível neste mundo, tudo depende do preço!”
“Você se engana, Radamés. Doutor
Pompílio de Taques não se venderia nem por toda a fortuna da terra.”
“...e eu não tenho toda a fortuna da
terra...” – replicou Radamés, desanimado, pensando nas taxas, autenticações e
honorários cujo custo se estendia caudalosamente, como uma estrada sem fim.
“E mesmo que tivesse...” – insistiu o
advogado, pensando que esta conversa não iria levar a lugar algum.
“Mas doutor, às vezes... o senhor sabe,
as pessoas acabam se deixando dobrar por outras gentilezas, pequenos presentes,
alguns favorezinhos...”
“Não, meu caro Radamés, com o doutor
Pompílio a coisa é outra.”
Radamés pensou um pouco e fez mais uma
tentativa.
“Doutor Calixto, a gente precisa
descobrir o que o juiz gosta de fazer, afinal todo mundo tem um passatempo...”
“Ah, Radamés, isso todo mundo sabe.
Doutor Pompílio é doido pela vida do campo, adora um sítio que ele tem no
interior, gosta de criar porquinhos e cuida deles como se fossem animais de estimação.”
“Então, doutor, quem sabe se a gente
desse um porquinho de presente pra ele...”
“Nem pensar, Radamés, nem pensar! Se
dermos um porco para ele a título de presente, ele nos dará a causa como
perdida sem sequer analisar o processo. O homem é incorruptível, Radamés,
in-cor-rup-tí-vel!”
“Então... o jeito é esperar e torcer?”
“Esperar e torcer, Radamés, mas também
apostar no nosso direito, na minha competência e no esplendor da verdade!” –
disse doutor Calixto, meio agastado com a falta de confiança do seu cliente.
Acontece que Radamés não apostava um
tostão furado nas razões e justificativas apresentadas no processo e tinha
sérias dúvidas sobre a propalada competência do doutor, sem falar que
“esplendor da verdade” mais parecia nome de fantasia carnavalesca.
Era preciso mais do que esperar e
torcer. Era preciso agir, e agir rápido, senão o Vivaldo iria ganhar a causa e
ainda rir na sua cara, isto sem contar as custas do processo, os honorários
advocatícios, as despesas de cartório e toda a parafernália burocrática a que
todos estamos sujeitos quando embalados ao sabor da lei.
Doutor Calixto fitava Radamés com uma
expressão presunçosa, ainda cofiando a barba rala e pensando em como um imbecil
desses, que nada entende de Direito, pode ficar questionando as sutilezas de um
processo penal.
“Quer dizer, doutor, que não tem mesmo jeito
de conversar com o homem?”
“Impossível, Radamés, impossível, “ –
respondeu o advogado já com um tom de irritação na voz. “O jeito é aguardarmos
a audiência na terça-feira para que o nosso arrazoado seja devidamente
apreciado e declarado vencedor da questão” (E ponto final neste assunto! –
sentenciou mudamente).
Radamés aparentemente se resignou, mas
tinha dentro de si a convicção de que o arrazoado do doutor Calixto não passava
de um amontoado de tolices. O velho gabola lhe havia sido indicado por um amigo
como sendo um advogado com muita experiência que iria cobrar barato, em nome da
amizade.”
A justiça lhe parecia ao mesmo tempo fortuita
e discriminatória, com os olhos vendados e a espada na mão, pronta para ceifar
cabeças sem nenhum critério, pesando os prós e os contra de um julgamento na
sua balança de dois pesos e duas medidas.
Radamés saiu do escritório do doutor
Calixto extremamente preocupado com a próxima terça-feira.
-0-0-0-
Não se falou mais no assunto até as nove
da manhã da terça-feira, que oscilava entre promissora e fatídica.
No segundo andar do imponente edifício
do Fórum, onde ficava a Sexta Vara, compareceram todos os implicados no
intrincado imbróglio: Radamés, cheio de dúvidas, doutor Calixto, cheio de
anéis, Vivaldo, cheio de certezas, e o seu advogado, cheio de arrogância e
papéis.
O escrivão passou por eles sem dar a
mínima importância e entrou na sala. Também passou por eles um oficial
carregando documentos com a expressão grave de quem carrega uma câmara
mortuária, dando passagem para o eminente e meritíssimo doutor Pompílio de
Taques Abrunhosa, todo togado e com cara de poucos amigos, grunhindo um “m’dia”
sem se dignar a olhar para o desprezível grupo que esperava impaciente diante
da sala e também adentrou a sala de julgamento – “plam!” – batendo a porta
deseducadamente.
Doutor Calixto finalmente se deu ares de
mortal e começou a porejar, enxugando a testa e o queixo de barba rala com um
lenço branco, como se dando um derradeiro adeus. Radamés e Vivaldo olhavam para
o alto, contemplando o imponente lustre colonial a balançar timidamente,
enquanto o advogado de Vivaldo olhava fixamente para o doutor Calixto com a
expressão triunfante e um sorriso estranho estampado nos lábios, uma mistura
assim como entre Monalisa e Vincent Price.
“Há alguma possibilidade de acordo?” –
murmurou Calixto preocupado para o seu oponente.
“Não, excelência.” – retrucou secamente
o outro advogado.
Doutor Calixto olhou bem dentro dos
olhos do outro com um olhar de raiva, como se quisesse – e queria – atirá-lo
escadaria abaixo em direção as Varas de Família onde um punhado de casais
casava e outro punhado maior descasava.
“Então, vamos à luta!” – disse doutor
Calixto com dignidade.
O outro não disse nada, apenas sorriu,
estampando a sua superioridade.
O oficial abriu a porta e convidou todos
a entrarem.
Do alto da sua importância, como um
camerlengo num púlpito, o meritíssimo Pompílio de Taques leu as laudas, como de
praxe, e ouviu as ponderações de ambas as partes como se estivesse ouvindo
nada, com os ouvidos moucos ao palavrório e com o olhar distante para o fundo
da sala para algum ponto que, dentro do ponto de vista de Radamés, sentado meio
de lado, mostrava uma pintura a óleo de um cocho sob uma árvore frondosa, e
alguns porquinhos se refestelando na lama.
Encerrada a fase das idas e vindas, das
declarações e dos apartes, das acusações e das queixas, o meritíssimo voltou à
vida, limpou a garganta com um pigarro monumental que se tornava imponente,
dado o repentino silêncio reinante, e do alto do seu pedestal engoliu meio copo
d’água e declarou seu veredicto.
“É decisão desta corte que o ganho de
causa seja dado ao senhor Radamés Plutarco, aqui presente e representado pelo
seu advogado doutor Calixto Fortes. As terras em litígio deverão ser imediatamente
reintegradas ao patrimônio do senhor Radamés, ficando sem efeito o recurso
impetrado pelo senhor Vivaldo Perequê, a quem caberão os custos do processo.”
Aguardou um momento e completou, alto e em
bom som: “Declaro encerrada a sessão!”
Enquanto o juiz proferia a sentença,
doutor Calixto cofiava a barba rala, com uma expressão radiante, olhando bem
nos olhos do advogado da outra parte, que nada entendia, boquiaberto. Vivaldo
também encarava o seu advogado com um olhar enfurecido, e Radamés observava
candidamente os detalhes dos porquinhos a chafurdarem na lama.
-0-0-0-
Doutor Calixto, envaidecido como um
pavão, se dava ares de importância.
“Não disse a você, Radamés, não disse a
você para confiar no meu trabalho?”
Enquanto Vivaldo Parequê descia as
escadas desamparado, embora amparado pelo seu atônito advogado, Radamés
retrucou:
“As coisas não acontecem naturalmente,
doutor. A gente tem sempre que dar um empurrãozinho por fora...”
“Como assim, Radamés, empurrãozinho...
como assim?”
“Bem doutor, não foi propriamente pelo
seu trabalho que a gente ganhou a questão, mas pelo meu presente...”
“Presente?! Que presente, Radamés? Para
quem o presente?”
“O porco, doutor Calixto, o porco...”
“O porco? Quer dizer que você deu um
porco de presente, Radamés?”, argüiu ele, antecipando a resposta.
“Sim” – disse Radamés, dando os ombros
com naturalidade – “de presente para o doutor Pompílio.”
“Não pode ser, Radamés, não vou
acreditar que o doutor Pompílio iria se vender por um porco!”
“Eu também não iria acreditar, doutor,
depois que o senhor me garantiu que ele era incorruptível...”
“E então?! Que diabo de história de
presente é essa??!” – exasperou-se o advogado.
“É que eu mandei um porquinho todo
cor-de-rosa pro juiz, com todo respeito, com um bilhetinho preso a uma fita
amarrada no pescoço do bicho...”
“Mas...”
“...mas o bilhetinho dizia ao doutor
Pompílio que o presente era da parte do Vivaldo, por recomendação do seu
advogado...”
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