domingo, 5 de março de 2017




O PORCO

“Mas então, o que a gente deve fazer para ganhar a questão?”
“O que tinha que ser feito já foi feito, Radamés. Entramos com a petição dentro do prazo, anexamos as certidões, fizemos a exposição de motivos, tudo como manda o figurino. A primeira audiência já foi realizada, já foram ouvidas as testemunhas, e o caso deve chegar agora ao seu final.”
“Mesmo assim, eu preciso ter certeza de que tudo vai dar certo, doutor...”
“Tudo está sendo encaminhado da maneira correta, Radamés. Estamos agindo de acordo com o bom senso e com as leis do Direito.”
“Mas o advogado do Vivaldo deve estar também fazendo a mesma coisa, assim a gente só tem cinqüenta por cento de chance de ganhar...”
“...nem tanto, Radamés, nem tanto...”
Radamés se pôs a pensar se este “nem tanto” se referia à capacidade do advogado do Vivaldo ou se (com uma crescente preocupação) ao percentual estimado para vencer a causa.
“Quem vai julgar o caso, dar a palavra final?”
“ O juiz já está indicado, Radamés, é o doutor Pompílio de Taques, um grande juiz, Radamés, um grande juiz!” – disse  o advogado enquanto cofiava a barba rala que se espalhava pela papada do queixo.
“É um daqueles sérios, da velha guarda?”
“Incorruptível, Radamés, incorruptível! Julga os casos com a máxima isenção e se assenta exclusivamente nos ditames do Direito Romano e na sua sapiência jurídica para tomar suas decisões, Radamés.”
Radamés não concordava com a verborragia desmedida do advogado.
“Ah, doutor, não existe ninguém incorruptível neste mundo, tudo depende do preço!”
“Você se engana, Radamés. Doutor Pompílio de Taques não se venderia nem por toda a fortuna da terra.”
“...e eu não tenho toda a fortuna da terra...” – replicou Radamés, desanimado, pensando nas taxas, autenticações e honorários cujo custo se estendia caudalosamente, como uma estrada sem fim.
“E mesmo que tivesse...” – insistiu o advogado, pensando que esta conversa não iria levar a lugar algum.    
“Mas doutor, às vezes... o senhor sabe, as pessoas acabam se deixando dobrar por outras gentilezas, pequenos presentes, alguns favorezinhos...”
“Não, meu caro Radamés, com o doutor Pompílio a coisa é outra.”
Radamés pensou um pouco e fez mais uma tentativa.
“Doutor Calixto, a gente precisa descobrir o que o juiz gosta de fazer, afinal todo mundo tem um passatempo...”
“Ah, Radamés, isso todo mundo sabe. Doutor Pompílio é doido pela vida do campo, adora um sítio que ele tem no interior, gosta de criar porquinhos e cuida deles como  se fossem animais de estimação.”
“Então, doutor, quem sabe se a gente desse um porquinho de presente pra ele...”
“Nem pensar, Radamés, nem pensar! Se dermos um porco para ele a título de presente, ele nos dará a causa como perdida sem sequer analisar o processo. O homem é incorruptível, Radamés, in-cor-rup-tí-vel!”
“Então... o jeito é esperar e torcer?”
“Esperar e torcer, Radamés, mas também apostar no nosso direito, na minha competência e no esplendor da verdade!” – disse doutor Calixto, meio agastado com a falta de confiança do seu cliente.
Acontece que Radamés não apostava um tostão furado nas razões e justificativas apresentadas no processo e tinha sérias dúvidas sobre a propalada competência do doutor, sem falar que “esplendor da verdade” mais parecia nome de fantasia carnavalesca.
Era preciso mais do que esperar e torcer. Era preciso agir, e agir rápido, senão o Vivaldo iria ganhar a causa e ainda rir na sua cara, isto sem contar as custas do processo, os honorários advocatícios, as despesas de cartório e toda a parafernália burocrática a que todos estamos sujeitos quando embalados ao sabor da lei.
Doutor Calixto fitava Radamés com uma expressão presunçosa, ainda cofiando a barba rala e pensando em como um imbecil desses, que nada entende de Direito, pode ficar questionando as sutilezas de um processo penal.
“Quer dizer, doutor, que não tem mesmo jeito de conversar com o homem?”
“Impossível, Radamés, impossível, “ – respondeu o advogado já com um tom de irritação na voz. “O jeito é aguardarmos a audiência na terça-feira para que o nosso arrazoado seja devidamente apreciado e declarado vencedor da questão” (E ponto final neste assunto! – sentenciou mudamente).
Radamés aparentemente se resignou, mas tinha dentro de si a convicção de que o arrazoado do doutor Calixto não passava de um amontoado de tolices. O velho gabola lhe havia sido indicado por um amigo como sendo um advogado com muita experiência que iria cobrar barato, em nome da amizade.”   
A justiça lhe parecia ao mesmo tempo fortuita e discriminatória, com os olhos vendados e a espada na mão, pronta para ceifar cabeças sem nenhum critério, pesando os prós e os contra de um julgamento na sua balança de dois pesos e duas medidas.
Radamés saiu do escritório do doutor Calixto extremamente preocupado com a próxima terça-feira.

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Não se falou mais no assunto até as nove da manhã da terça-feira, que oscilava entre promissora e fatídica.
No segundo andar do imponente edifício do Fórum, onde ficava a Sexta Vara, compareceram todos os implicados no intrincado imbróglio: Radamés, cheio de dúvidas, doutor Calixto, cheio de anéis, Vivaldo, cheio de certezas, e o seu advogado, cheio de arrogância e papéis.
O escrivão passou por eles sem dar a mínima importância e entrou na sala. Também passou por eles um oficial carregando documentos com a expressão grave de quem carrega uma câmara mortuária, dando passagem para o eminente e meritíssimo doutor Pompílio de Taques Abrunhosa, todo togado e com cara de poucos amigos, grunhindo um “m’dia” sem se dignar a olhar para o desprezível grupo que esperava impaciente diante da sala e também adentrou a sala de julgamento – “plam!” – batendo a porta deseducadamente.
Doutor Calixto finalmente se deu ares de mortal e começou a porejar, enxugando a testa e o queixo de barba rala com um lenço branco, como se dando um derradeiro adeus. Radamés e Vivaldo olhavam para o alto, contemplando o imponente lustre colonial a balançar timidamente, enquanto o advogado de Vivaldo olhava fixamente para o doutor Calixto com a expressão triunfante e um sorriso estranho estampado nos lábios, uma mistura assim como entre Monalisa e Vincent Price.
“Há alguma possibilidade de acordo?” – murmurou Calixto preocupado para o seu oponente.
“Não, excelência.” – retrucou secamente o outro advogado.
Doutor Calixto olhou bem dentro dos olhos do outro com um olhar de raiva, como se quisesse – e queria – atirá-lo escadaria abaixo em direção as Varas de Família onde um punhado de casais casava e outro punhado maior descasava.
“Então, vamos à luta!” – disse doutor Calixto com dignidade.
O outro não disse nada, apenas sorriu, estampando a sua superioridade.
O oficial abriu a porta e convidou todos a entrarem.
Do alto da sua importância, como um camerlengo num púlpito, o meritíssimo Pompílio de Taques leu as laudas, como de praxe, e ouviu as ponderações de ambas as partes como se estivesse ouvindo nada, com os ouvidos moucos ao palavrório e com o olhar distante para o fundo da sala para algum ponto que, dentro do ponto de vista de Radamés, sentado meio de lado, mostrava uma pintura a óleo de um cocho sob uma árvore frondosa, e alguns porquinhos se refestelando na lama.
Encerrada a fase das idas e vindas, das declarações e dos apartes, das acusações e das queixas, o meritíssimo voltou à vida, limpou a garganta com um pigarro monumental que se tornava imponente, dado o repentino silêncio reinante, e do alto do seu pedestal engoliu meio copo d’água e declarou seu veredicto.
“É decisão desta corte que o ganho de causa seja dado ao senhor Radamés Plutarco, aqui presente e representado pelo seu advogado doutor Calixto Fortes. As terras em litígio deverão ser imediatamente reintegradas ao patrimônio do senhor Radamés, ficando sem efeito o recurso impetrado pelo senhor Vivaldo Perequê, a quem caberão os custos do processo.”
Aguardou um momento e completou, alto e em bom som: “Declaro encerrada a sessão!”
Enquanto o juiz proferia a sentença, doutor Calixto cofiava a barba rala, com uma expressão radiante, olhando bem nos olhos do advogado da outra parte, que nada entendia, boquiaberto. Vivaldo também encarava o seu advogado com um olhar enfurecido, e Radamés observava candidamente os detalhes dos porquinhos a chafurdarem na lama.

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Doutor Calixto, envaidecido como um pavão, se dava ares de importância.
“Não disse a você, Radamés, não disse a você para confiar no meu trabalho?”
Enquanto Vivaldo Parequê descia as escadas desamparado, embora amparado pelo seu atônito advogado, Radamés retrucou:
“As coisas não acontecem naturalmente, doutor. A gente tem sempre que dar um empurrãozinho por fora...”
“Como assim, Radamés, empurrãozinho... como assim?”
“Bem doutor, não foi propriamente pelo seu trabalho que a gente ganhou a questão, mas pelo meu presente...”
“Presente?! Que presente, Radamés? Para quem o presente?”
“O porco, doutor Calixto, o porco...”
“O porco? Quer dizer que você deu um porco de presente, Radamés?”, argüiu ele, antecipando a resposta.
“Sim” – disse Radamés, dando os ombros com naturalidade – “de presente para o doutor Pompílio.”
“Não pode ser, Radamés, não vou acreditar que o doutor Pompílio iria se vender por um porco!”
“Eu também não iria acreditar, doutor, depois que o senhor me garantiu que ele era incorruptível...”
“E então?! Que diabo de história de presente é essa??!” – exasperou-se o advogado.
“É que eu mandei um porquinho todo cor-de-rosa pro juiz, com todo respeito, com um bilhetinho preso a uma fita amarrada no pescoço do bicho...”
“Mas...”
“...mas o bilhetinho dizia ao doutor Pompílio que o presente era da parte do Vivaldo, por recomendação do seu advogado...”
    
       


 



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