segunda-feira, 11 de setembro de 2017




O ATOR

(QUARTA PARTE – DUETO)

Dorotéa – nascida Maria dos Anjos conforme consta nos implacáveis documentos – me odiava, talvez por saber que o público preferia os meus entreatos à sua exibição em tempo integral. E, embora se apresentasse como a artista principal da trupe, ela sempre deixava transparecer sua total insegurança, tanto dentro como fora do palco.
Esta insegurança se tornou mais evidente após uma tarde de ensaios, quando madame Rubaloca, a esposa do dono, apareceu sem avisar, flagrando a atriz e o señor Benito numa situação profundamente embaraçosa: embora não fosse o diretor de cena, Benito Rubaloca enlaçava a prima-dona nos braços para mostrar ao ator que interpretava o vendedor de escovas como a cena romântica deveria se desenvolver, e a coisa parecia real demais para ser encenação. Timóteo se limitava a ajustar o posicionamento dos atores no palco, e parecia ligeiramente incomodado com a situação.
Mas Timóteo era o anti-diretor por excelência.
A sua presença e as suas orientações sempre soavam perfeitamente dispensáveis na medida em que ele não conseguia passar para o elenco a emoção desejada pela trama. Felizmente para todos, Montalvão – o autor – esteve pessoalmente dirigindo a peça nas três primeiras semanas antes da estreia e transmitiu para os artistas todas as filigranas e trejeitos necessários para um bom desempenho no palco.
Faltam a Timóteo a postura e a afetação dos grandes mestres da encenação. Quem o via circulando pelo palco e pelos bastidores tomá-lo-ia por um mero assistente de produção, tal a sua preocupação com os detalhes pouco significativos do espetáculo e a sua falta de preocupação com a dramaturgia que o enredo exigia.
Estranho é que com todos estes problemas o espetáculo conseguisse lotar o Teatro Aliança em todas as suas três exibições semanais, o que talvez sirva de crédito para o jovem Montalvão. E mais estranho ainda é que os aplausos fossem quentes como a luz, como diz o lirismo da poesia, hora em que todos os participantes se davam as mãos hipocritamente para fazer vênia a um público tão generoso.
A temporada seguia com relativo sucesso apesar dos desacertos internos, e o bonde parecia rolar direitinho sobre os trilhos até madame Rubaloca aparecer novamente de surpresa numa outra tarde de ensaios, me chamar para um “tête-a-tête” nos bastidores e perguntar o que estaria acontecendo entre o pérfido Benito e a ardilosa Dorotéa.
A pergunta veio de supetão, e me pegou de surpresa.
Na falta de saber como proceder, comecei a gaguejar, coisa inadmissível para um declamador de escol, como eu. Pela primeira vez na vida – agora penso que talvez propositalmente, traído pelo inconsciente – não fui capaz de desempenhar meu papel de ator à altura da minha capacidade. Pela primeira vez não consegui ser convincente, e meu olhar hesitante traiu a resposta mentirosa que seria adequada para o momento.
Deve ter falado mais alto o meu insuspeito mau caráter e a possibilidade de colocar um fim nas veleidades de Dorotéa e seu orgulho irracional, para de repente me colocar na pele de um Iago e incendiar de dúvidas a cabeça conturbada, não de Otelo, mas de dona Ignes Rubaloca, dizendo coisas sem dizer, como se estivesse querendo proteger o safado do seu marido, mas encontrando as palavras corretas para envenenar a sua alma.
Então, finalmente percebi ter reencontrado o fabuloso ator que mora em mim. Com a minha soberba e dissimulada atuação eu iria provocar um escândalo de adoráveis proporções, funcionando como uma vingança perfeita para as minhas desditas dentro da companhia.
A pólvora já estava lá, eu apenas riscava o fósforo.


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