O
ATOR
(QUARTA
PARTE – DUETO)
Dorotéa
– nascida Maria dos Anjos conforme consta nos implacáveis documentos – me odiava,
talvez por saber que o público preferia os meus entreatos à sua exibição em
tempo integral. E, embora se apresentasse como a artista principal da trupe, ela
sempre deixava transparecer sua total insegurança, tanto dentro como fora do
palco.
Esta
insegurança se tornou mais evidente após uma tarde de ensaios, quando madame
Rubaloca, a esposa do dono, apareceu sem avisar, flagrando a atriz e o señor Benito numa situação profundamente
embaraçosa: embora não fosse o diretor de cena, Benito Rubaloca enlaçava a
prima-dona nos braços para mostrar ao ator que interpretava o vendedor de
escovas como a cena romântica deveria se desenvolver, e a coisa parecia real
demais para ser encenação. Timóteo se limitava a ajustar o posicionamento dos
atores no palco, e parecia ligeiramente incomodado com a situação.
Mas
Timóteo era o anti-diretor por excelência.
A
sua presença e as suas orientações sempre soavam perfeitamente dispensáveis na
medida em que ele não conseguia passar para o elenco a emoção desejada pela
trama. Felizmente para todos, Montalvão – o autor – esteve pessoalmente
dirigindo a peça nas três primeiras semanas antes da estreia e transmitiu para
os artistas todas as filigranas e trejeitos necessários para um bom desempenho no
palco.
Faltam
a Timóteo a postura e a afetação dos grandes mestres da encenação. Quem o via
circulando pelo palco e pelos bastidores tomá-lo-ia por um mero assistente de
produção, tal a sua preocupação com os detalhes pouco significativos do
espetáculo e a sua falta de preocupação com a dramaturgia que o enredo exigia.
Estranho
é que com todos estes problemas o espetáculo conseguisse lotar o Teatro Aliança
em todas as suas três exibições semanais, o que talvez sirva de crédito para o
jovem Montalvão. E mais estranho ainda é que os aplausos fossem quentes como a
luz, como diz o lirismo da poesia, hora em que todos os participantes se davam
as mãos hipocritamente para fazer vênia a um público tão generoso.
A
temporada seguia com relativo sucesso apesar dos desacertos internos, e o bonde
parecia rolar direitinho sobre os trilhos até madame Rubaloca aparecer novamente
de surpresa numa outra tarde de ensaios, me chamar para um “tête-a-tête” nos
bastidores e perguntar o que estaria acontecendo entre o pérfido Benito e a ardilosa
Dorotéa.
A
pergunta veio de supetão, e me pegou de surpresa.
Na
falta de saber como proceder, comecei a gaguejar, coisa inadmissível para um
declamador de escol, como eu. Pela primeira vez na vida – agora penso que
talvez propositalmente, traído pelo inconsciente – não fui capaz de desempenhar
meu papel de ator à altura da minha capacidade. Pela primeira vez não consegui
ser convincente, e meu olhar hesitante traiu a resposta mentirosa que seria adequada
para o momento.
Deve
ter falado mais alto o meu insuspeito mau caráter e a possibilidade de colocar
um fim nas veleidades de Dorotéa e seu orgulho irracional, para de repente me
colocar na pele de um Iago e incendiar de dúvidas a cabeça
conturbada, não de Otelo, mas de dona Ignes Rubaloca, dizendo coisas sem dizer,
como se estivesse querendo proteger o safado do seu marido, mas encontrando as
palavras corretas para envenenar a sua alma.
Então,
finalmente percebi ter reencontrado o fabuloso ator que mora em mim. Com a
minha soberba e dissimulada atuação eu iria provocar um escândalo de adoráveis
proporções, funcionando como uma vingança perfeita para as minhas desditas dentro
da companhia.
A
pólvora já estava lá, eu apenas riscava o fósforo.
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