Conto escrito para o livro “O Fantasma
da FM”, publicado em 1992
RETALHOS E REBOTALHOS
(Parte Um)
Chove granizo na minha sala de visitas.
Janela aberta, verão a pleno, tapete de
juta. As pedrinhas saltam como pulgas de cristal e se desfazem magicamente,
deixando sua marca molhada sobre as tranças do tapete.
Não é noite ainda, embora ela se
aproxime lenta e silenciosamente como uma lagartixa.
O tilintar da chuva sobre o telhado e
sobre o vidro superior da janela e sobre todas as coisas – plantas, banco de
madeira e lata de lixo – parece uma sinfonia. Tento captar algum som que me lembre
o jazz, e o máximo que consigo é ouvir o rufar maluco de Buddy Rich nos pratos
e na caixa.
E eu tentando dormitar nesta cama que
nem sequer é cama, uma dessas poltronas monta-desmonta comprada à prestação em
alguma casa do ramo, como dizem as propagandas e os entendidos.
Sinto uma mão invisível se aproximar do
meu pescoço tão devagar como se fosse regulada por um parafuso milimétrico,
demorada, mas inexorável, sabendo estarem meus olhos semicerrados e minhas
mãos, braços e pernas atados aos lençóis pelas cordas do sono. Alguém já sentiu
isso? Essa horrível letargia, a gente parece que está acordado, mas está
semidormindo, a gente tem vontade de gritar e de se levantar, mas “a coisa” não
deixa – “Largue! Deixe-me gritar!” –
como dizia aquele antigo anúncio do Xarope São João.
Esta mão lenta me aterroriza, não por
causa da sua cor verde clorofila, nem pelas suas escamas furta-cor, mas pelo
seu anel de um pálido redondo, que eu sei tratar-se de um botão que quando apertado
vai fazer esta coisa medonha saltar como uma rã e transformar minha garganta em
fios dilacerados.
Eu durmo (durmo?!) como se estivesse me
revirando em cima de uma grelha rubro incandescente ou branca e quebradiça,
feita de gelo.
Durmo? Não é nada agradável este calor nem
este frio, nem este sono agitado ou esta mão sem corpo.
Então acordo de supetão, como se
estivesse entrando ou saindo de um vórtice, a chuva ainda caindo, Buddy Rich em
êxtase, mas os dedos verdes se desfazendo no ar, a garganta felizmente em
ordem.
Se não, como eu faria para soprar na
noite-madrugada?
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