quarta-feira, 18 de outubro de 2017






Conto escrito para o livro “O Fantasma da FM”, publicado em 1992

RETALHOS E REBOTALHOS

(Parte Um)

Chove granizo na minha sala de visitas.
Janela aberta, verão a pleno, tapete de juta. As pedrinhas saltam como pulgas de cristal e se desfazem magicamente, deixando sua marca molhada sobre as tranças do tapete.
Não é noite ainda, embora ela se aproxime lenta e silenciosamente como uma lagartixa.
O tilintar da chuva sobre o telhado e sobre o vidro superior da janela e sobre todas as coisas – plantas, banco de madeira e lata de lixo – parece uma sinfonia. Tento captar algum som que me lembre o jazz, e o máximo que consigo é ouvir o rufar maluco de Buddy Rich nos pratos e na caixa.
E eu tentando dormitar nesta cama que nem sequer é cama, uma dessas poltronas monta-desmonta comprada à prestação em alguma casa do ramo, como dizem as propagandas e os entendidos.
Sinto uma mão invisível se aproximar do meu pescoço tão devagar como se fosse regulada por um parafuso milimétrico, demorada, mas inexorável, sabendo estarem meus olhos semicerrados e minhas mãos, braços e pernas atados aos lençóis pelas cordas do sono. Alguém já sentiu isso? Essa horrível letargia, a gente parece que está acordado, mas está semidormindo, a gente tem vontade de gritar e de se levantar, mas “a coisa” não deixa – “Largue! Deixe-me gritar!” – como dizia aquele antigo anúncio do Xarope São João.
Esta mão lenta me aterroriza, não por causa da sua cor verde clorofila, nem pelas suas escamas furta-cor, mas pelo seu anel de um pálido redondo, que eu sei tratar-se de um botão que quando apertado vai fazer esta coisa medonha saltar como uma rã e transformar minha garganta em fios dilacerados.
Eu durmo (durmo?!) como se estivesse me revirando em cima de uma grelha rubro incandescente ou branca e quebradiça, feita de gelo.
Durmo? Não é nada agradável este calor nem este frio, nem este sono agitado ou esta mão sem corpo.
Então acordo de supetão, como se estivesse entrando ou saindo de um vórtice, a chuva ainda caindo, Buddy Rich em êxtase, mas os dedos verdes se desfazendo no ar, a garganta felizmente em ordem.

Se não, como eu faria para soprar na noite-madrugada?

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