RETALHOS
E REBOTALHOS
1992
1992
(Parte
Dois)
Ricky López é um saxofonista tenor que
também ataca de alto. Seu nome de batismo é Ricardo Porfírio Máximo de Souza
Lopes, nascido em Oliveira dos Brejinhos, no sertão baiano, soprador de
berrante, tocador de bois, mas hoje ele é Ricky López, músico que tenta a vida
nos Jardins, o Éden incrustado na Paulicéia, o sax, as luzes, o agitado e
frenético “way of life”.
Ricky mora no primeiro andar de um
prédio de apartamentos com jardim verde-florido e tudo mais. Na sala, cinzeiro,
cigarro, camisa amarrotada e um copo d’água pela metade, o cenário enfeitado
por uma pirogravura mostrando a fachada da antiga Faculdade de Medicina e um
calendário de parede Pan-Am, mostrando aqueles lugares da Alemanha e da Suíça
que estão definitivamente fora do nosso alcance e do nosso bolso e da nossa
cultura.
Sapato tombado de lado, meia revirada, mesa
de centro com capas de discos de vinil – Lester Young, Cannonball Adderley,
Jimmy Giuffre – Ricky López “wants to be
on the top”.
Mas Ricky Porfírio anda arregaçado com
os nervos.
Primeiro a adaptação. Afinal, começara
tocando na banda da brejeira Oliveira, aprendendo o sopro com o tio Emérito – “olhe aqui, menino, isto é uma palheta, isto
é um bocal, o saxofone é mais bonito, tu ficas bem com o instrumento no pescoço!” – na verdade,
ele mais parecia um boi de parelha com aqueles arreios todos e o pescoço
pendido para baixo, feito bago de uva, mas ele não deixou por menos, soprou e
soprou, aprendeu a diferenciar fusas de semi-fusas, e percebeu que existia algo
mais do que o bonito, algo muito mais sensual e humano na voz do sax-tenor, nas
curvas do sax-tenor, no “sax-so-funny”,
no “sex-soul-phony”, com todos os seus
tentáculos e todas as suas ventosas, as tentações do vício, as tentações da
carne, as tentações da noite, a carta da tia chorosa, da tia Jerusa, - “volta,
filho, vem de volta tocar seu bombardino nas festas da cidade, deixa isso de
aventura, chega de tanta querência, tio Emérito está esperando, já está com
oitenta mas ainda é forte e parrudo, ainda apronta suas chamuscadas nos forrós
da praça, ainda curte a sua cana brava na vida caiana!”.
Mas Porfírio foi ficando, foi se
adaptando à metrópole, passou longe do demônio dos vícios, soprou numa festa de
estudantes de direito e caiu no gosto dos presentes – “toca Summertime!!, toca Stardust” – e ele que só sabia soprar as
músicas do soldado Ambrósio. Na calada das madrugadas, porém, ele foi se
esgueirando por entre as casas musicais, ou então ficava em casa se habituando
com o vibrato de Coleman Hawkins ou com a enxurrada de notas de John Coltrane
nas noites solitárias ou nos dias de granizo.
Assim nascia Ricky López, artista de
jazz, paletó largo, camisa estampada e colorida, sapato branco e dedos ágeis,
apertando aqui e ali, acariciando a coluna dorsal do seu sax dourado, cujo
brilho refletia todas as cores e todas as caras apesar da fumaça embaçada e da
meia obscuridade das lâmpadas cada vez mais “dim”.
É preciso ser artista para ser artista.
É preciso ter persistência para
enfrentar as portas batidas na cara quando à procura de oportunidades, é
preciso ter estômago para não vomitar na cara daquele figurão que pensa que
sabe tudo e te trata como um idiota, é preciso ter saco para aturar aquele
público errado, sempre pedindo para você tocar aquela música que você não
conhece ou que conhece e detesta, é preciso ter sorte para descobrir um emprego
onde você possa dar asas às emoções das notas musicais, das “suas” notas musicais, bem entendido, e
ainda ganhar o miseravelmente necessário para cobrir o mínimo das suas
necessidades.
É preciso ser de pedra para aturar o
desaforo daquele sujeito cretino que pede para você tocar a música errada na
hora errada, e vê-lo, um apanágio da incultura, gargalhar acompanhado pela
fêmea mais “cover girl” do pedaço,
ela que também deve ser uma burra de penacho para concordar com aquela cara,
com aquele jeito, com aquele mau gosto e provavelmente com aquele bafo.
É preciso ser falso para conseguir
chegar ao prazer todas as noites tocando exatamente a mesma coisa; é preciso
ser mágico para tentar encontrar naquela harmonia alguma nota ou alguma pausa
escondida, alguma passagem que não seja rotineira.
É preciso seu um gênio para sair daquele
buraco às quatro da manhã, observando a decadência pouco a pouco tomar conta de
cada um dos “habitués” de voz
pastosa, o garçom colocando três ou quatro doses a mais na conta – “esta é para o santo” – e a sempiterna reclamação
que nunca resolve absolutamente nada.
É preciso ser um santo para estudar
música oito horas por dia.
É preciso ser Deus para tocar como
Charlie Parker.
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