quarta-feira, 6 de dezembro de 2017





O MURO

(Parte Três)

(Conto escrito para o livro “À noite, todos os gatos”, publicado em 1998)

Este bronze trinta e quatro foi realmente um marco na minha vida.
Eu ficava todo orgulhoso cada vez que a empregada da casa perdia alguns minutos passando polidor na minha placa, com a esperança renovada de que eles decidissem pintar-me de novo, pra valer, como manda o figurino das lojas de tintas.
E a coisa surgiu naturalmente, como acontecem as mais simples coisas da vida.
Veio a festa de aniversário da menina, e com os preparativos da festa uma discussão bem aqui na minha frente, a dona dizia que o muro deveria ser pintado para ficar bonito – eu agradeci sorrindo entre os tijolos – e o dono fazendo como sempre os cálculos mentais do custo da festa de quinze anos pensando em optar por um outro retoque à cal hidratada, cor de rosa ainda por cima, vejam só que despautério! Felizmente acabou prevalecendo, como sempre prevalece nestes casos, a opinião da matrona, que se encarregou de chamar um pintor de verdade com todo o seu aparato – lixa, escova, espátula, e até um desnecessário andaime – para uma recuperação completa da minha cútis, cobrindo as fendas, nivelando a argamassa e usando material de primeiríssima para meu embelezamento final em branco.
Foi um período de glória.
A festa foi sobretudo um sucesso, a casa regurgitava de gente bonita e bem cheirosa que, de curiosa, se colocou fora do alcance dos galhos intrometidos do bougainville do jardim e assoprou as nuvens de algodão para alhures.
Mas, como dizem, festa acabada, músicos a pé,
Voltamos ao dia-a-dia de fastio mantendo porém a minha brancura imaculada, os vadios foram pintar em outra freguesia para a alegria de toda a minha família e eu me sentia um pouco mais seguro.
Certo dia o terreno baldio à minha frente começou a ser desmatado e plainado, os ratos e as baratas fugiram pelos bueiros em direção a algum outro terreno das cercanias onde pudessem ser brindados com restos de comida, caixas de papelão, pneus rasgados e excrementos, e chegaram então alguns homens com um caminhão cheio de materiais de construção – Construtora Elipse, estava escrito – e, maravilha das maravilhas, começaram a construir a mais graciosa parede que eu tive a oportunidade de ver, na verdade a primeira, mas divinamente bela, com ornatos de pedra e um pequeno gradil harmoniosamente desenhado com motivos bizantinos, e finalmente pintaram-na de azul celeste.
Agora sim eu tinha a quem admirar e a quem mostrar todo o meu garbo nos dias de sol, nas tardes de chuva, nas noites de céu estrelado, no inverno cheio de neblina ou no verão cheio de insetos soltando as asas.
-0-
E assim nasceu um grande amor.
Murilo e Celeste de repente se entreolhando, depois se olhando com firmeza, dia e noite sem parar, buscando – quem sabe – perpetuar numa eternidade de esfinge essa admiração mútua, mesmo se com o passar do tempo o azul fosse desbotando, mesmo se o branco voltasse a ser riscado com maldade e ignorância, mesmo que o arbusto crescesse e viesse abrigar não apenas um, mas diversos sacos de lixo a seus pés.
Eu cá enfeitado de bougainville à minha destra, Celeste emoldurada pelos ornamentos decorativos, a a minha placa 34 reluzindo o reluzir dos metais nobres, como se fosse uma medalha de iuro.
Até parece que os passarinhos em revoada não cantavam sobre nós, mas para nós.

SEGUE

   

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