O MURO
(Parte Três)
(Conto
escrito para o livro “À noite, todos os gatos”, publicado em 1998)
Este bronze trinta e
quatro foi realmente um marco na minha vida.
Eu ficava todo
orgulhoso cada vez que a empregada da casa perdia alguns minutos passando
polidor na minha placa, com a esperança renovada de que eles decidissem
pintar-me de novo, pra valer, como manda o figurino das lojas de tintas.
E a coisa surgiu
naturalmente, como acontecem as mais simples coisas da vida.
Veio a festa de
aniversário da menina, e com os preparativos da festa uma discussão bem aqui na
minha frente, a dona dizia que o muro deveria ser pintado para ficar bonito –
eu agradeci sorrindo entre os tijolos – e o dono fazendo como sempre os
cálculos mentais do custo da festa de quinze anos pensando em optar por um
outro retoque à cal hidratada, cor de rosa ainda por cima, vejam só que
despautério! Felizmente acabou prevalecendo, como sempre prevalece nestes
casos, a opinião da matrona, que se encarregou de chamar um pintor de verdade
com todo o seu aparato – lixa, escova, espátula, e até um desnecessário andaime
– para uma recuperação completa da minha cútis, cobrindo as fendas, nivelando a
argamassa e usando material de primeiríssima para meu embelezamento final em
branco.
Foi um período de
glória.
A festa foi sobretudo
um sucesso, a casa regurgitava de gente bonita e bem cheirosa que, de curiosa,
se colocou fora do alcance dos galhos intrometidos do bougainville do jardim e assoprou as nuvens de algodão para
alhures.
Mas, como dizem,
festa acabada, músicos a pé,
Voltamos ao dia-a-dia
de fastio mantendo porém a minha brancura imaculada, os vadios foram pintar em outra
freguesia para a alegria de toda a minha família e eu me sentia um pouco mais
seguro.
Certo dia o terreno
baldio à minha frente começou a ser desmatado e plainado, os ratos e as baratas
fugiram pelos bueiros em direção a algum outro terreno das cercanias onde
pudessem ser brindados com restos de comida, caixas de papelão, pneus rasgados
e excrementos, e chegaram então alguns homens com um caminhão cheio de
materiais de construção – Construtora Elipse, estava escrito – e, maravilha das
maravilhas, começaram a construir a mais graciosa parede que eu tive a
oportunidade de ver, na verdade a primeira, mas divinamente bela, com ornatos
de pedra e um pequeno gradil harmoniosamente desenhado com motivos bizantinos,
e finalmente pintaram-na de azul celeste.
Agora sim eu tinha a
quem admirar e a quem mostrar todo o meu garbo nos dias de sol, nas tardes de
chuva, nas noites de céu estrelado, no inverno cheio de neblina ou no verão
cheio de insetos soltando as asas.
-0-
E assim nasceu um
grande amor.
Murilo e Celeste de
repente se entreolhando, depois se olhando com firmeza, dia e noite sem parar,
buscando – quem sabe – perpetuar numa eternidade de esfinge essa admiração
mútua, mesmo se com o passar do tempo o azul fosse desbotando, mesmo se o
branco voltasse a ser riscado com maldade e ignorância, mesmo que o arbusto
crescesse e viesse abrigar não apenas um, mas diversos sacos de lixo a seus pés.
Eu cá enfeitado de bougainville à minha destra, Celeste emoldurada
pelos ornamentos decorativos, a a minha placa 34 reluzindo o reluzir dos metais
nobres, como se fosse uma medalha de iuro.
Até parece que os passarinhos
em revoada não cantavam sobre nós, mas para nós.
SEGUE
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