O MURO
(Parte Dois)
(Conto
escrito para o livro “À noite, todos os gatos”, publicado em 1998)
Durante um certo
tempo passei a não me importar com mais nada, a vida perdeu o sentido e eu me
sentia esquisito, como uma muralha de um castelo mal-assombrado, como um
paredão de fuzilamento.
Nem aquele casal de
pombos arrulhando feliz e fazendo cocô na minha cabeça, nem o arisco gato do
vizinho escalando meu dorso com suas unhas afiadas, nem a barriga fria da
lagartixa muito séria à cata das moscas que excursionavam risonhas e
eternamente satisfeitas, esfregando as mãos em delírio, nem a chuva que umedece
meu âmago de argila, desbota a minha maquiagem e descasca a minha pele já
trincada pela inclemência do sol, nada me faz esquecer as pinceladas mal feitas
a brocha com cal hidratada de segunda qualidade que, apesar dos disfarces,
deixava transparecer um pouco os hieróglifos traçados pelos dois mequetrefes.
Assim passei um bom
tempo apenas pensando no futuro incerto e observando a vida se desenrolar ao
meu redor.
Nas noites de
terça-feira, quando a lua se escondia por detrás das nuvens e o guarda-noturno
trilava o seu apito na esquina, aparecia aquele casal de namorados, a moça
trabalhava na casa que ficava ao lado do terreno baldio que ficava bem à minha
frente servindo de paisagem para o arbusto que vigiava o saco de lixo e o rapaz
sabe-se lá onde morava e de onde vinha, e se punham a esfregar no meu peito bem
ao lado de uma incipiente rachadura que ameaçava virar fenda, até que o trilar
do guarda chegasse cada vez mais perto, a lua se desnudasse esplendorosa ou a
vizinha ao terreno baldio acendesse as luzes do terraço e então os dois se
recompunham e ficavam disfarçando por alguns instantes, aguardando o guarda
passar – “boa noite!” – e fosse trilar o seu apito na outra esquina, a lua a
cobrir os seus olhos atrevidos com o galho do bougainville ou por detrás de uma outra nuvem de algodão e a luz do
terraço de novo morrer para se engalfinharem novamente como dois lutadores
furiosos.
Depois de tudo
terminado, lá se iam eles de mãos dadas como dois inocentes sem saber que eu
estou aqui, rijo e frio como me convém, mas anotando detalhe por detalhe no meu
cérebro inorgânico.
De madrugada, quando
a lua aparece novamente diáfana e despida de nuvens, vejo ratos correndo pelo
terreno baldio como se estivessem num play-ground,
ouço pequenos guinchados e alguma luta por um naco de comida ali jogada por
algum humano bestial, vejo baratas atravessando a rua em todas as direções sem
o perigo de serem esmagadas por um automóvel, algumas delas subindo pelo meu
costado, me fazendo cócegas com suas pernas serrilhadas e indo em direção ao
jardim, quem sabe em direção à varanda para algum dia serem descobertas na sua
louca aventura e então dizimadas pelo agente dedetizador, pobres cretinas.
O amanhecer é lindo, apesar
das moscas.
Mesmo com o corpo disfarçado
de cal e temendo um outro ataque de vandalismo – outro dia escreveram timidamente
“Murilo”, a carvão, e este bem que poderia ser o meu nome – vejo o sol brilhar e o meu branco agressivo a refletir
no suor do atleta barrigudo que faz neste dia a sua caminhada matinal, vejo o rapaz
da bicicleta entregando os jornais e vejo os meninos seguindo em direção à escola,
e me sinto importante quando o dono da casa abre o portão que me pertence e sai
todo pimpão com seu automóvel que, assim como eu, também anda precisando de uns
reparos.
-0-
A pedido do dono da casa
uns homens de broca em punho afixaram no meu lado direito, próximo ao portão, uma
placa de bronze com o número 34, o que me deixou envaidecido, pois agora, além de
nome tenho também um número de identificação.
SEGUE
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