O MURO
(Parte Um)
(Conto
escrito para o livro “À noite, todos os gatos”, publicado em 1998)
Penso,
logo existo.
A
frase pode não ser original, mas retrata o meu estado de espírito.
Eu
não apenas penso, mas também observo e perscruto as mazelas de um mundo
desmazelado, pelo menos o meu mundo, que alcança a miserável distância de uns
doze metros, incluindo o portão, com árvores frondosas tapando a minha visão
periférica à direita e à esquerda, qual poderosos antolhos balançantes.
Felizmente
não falo, o que me impede de incorrer em certas bobagens que já causaram o
pranto, o ódio, a guerra e a discórdia desde que se vez o verbo.
Na
minha quietude e discrição vejo o mundo desfilar à minha frente como se eu
estivesse acomodado em um sólio sobre um palanque ou numa vitrine, analisando
os espertos e os tolos, os educados e os sujos, os ricos e os pobres, pessoas,
animais e objetos.
-0-
O
dia de hoje amanheceu alegre, risonho e cheio de sol.
Um
passarinho saltita sobre o meu lado direito, perto do portão enorme de madeira
de lei, e um entregador de jornais passa pedalando a sua bicicleta.
A
empregada do vizinho amontoa um punhado de folhas que caíram da árvore do lado
direito durante a noite, soltas qual lágrimas tocadas pelo vento ou pela
natureza.
O
gordo passa bufando no seu exercício matinal antes de voltar pra casa e comer feito
um abade, dois meninos e uma menina caminham para a escola, eles chutando uma
lata vazia, ela apertando a mochila contra o busto liso, e o arbusto plantado há
poucos dias do outro lado da rua tem que suportar o fedor do saco plástico
cheio de lixo que alguém depositou ao seus pés.
Sou
branco - e aqui não cabe preconceito
algum – como poderia ser rosa, azul e até amarelo, já vi alguns semelhantes à
distância que eram marrom e já vi alaranjado, embora nunca tenha visto um muro
pintado de preto.
Tive
a sorte de ter sido cuidadosamente rebocado, pintado e retocado há apenas
alguns dias, e também tive a sorte de não receber nenhum adorno medieval como
cacos de vidro, pregos ou fieiras de arame farpado como numa penitenciária.
Originalmente
nasci nu como todo bom nascituro que se preze, obviamente nu e mal-acabado,
pois meu criador, quer por economia, quer por desconhecimento, resolveu me
rechear com pedaços irregulares de tijolos e usar barro como argamassa, me
deixando com aquela sensação de vazio nas entranhas e com aquela dolorosa cor
de terra.
Aí
então a casa foi vendida e o novo proprietário resolveu me embelezar, pois
afinal tudo estava sendo pintado e retocado com a melhor das tintas e com o
melhor dos apuros, incluindo a construção de caramanchões onde futuramente flores
deveriam florir, e a varanda larga e espaçosa onde futuramente o chão deveria
brilhar, e o gramado onde a grama deveria futuramente se alcatifar em meio a
aráceas e rododendros, e então eu fui novamente pintado de branco, um branco
angelical.
Engraçado,
como me sinto independente.
Ouço
frequentemente falarem sobre o dono da casa, o dono do jardim, o dono do
terreno e até mesmo o dono da rua, mas ninguém jamais mencionou “o dono do
muro”, apesar de eu estar morando no limiar de uma moradia, defendendo a sua privacidade
com a imponência de uma sentinela e ajudando a compor o visual do imóvel com o
meu branco virginal.
Ah,
o meu branco virginal...
Alguns
dias depois que os pintores se retiraram com os seus apetrechos para outras
paragens, passaram por mim dois rapazolas muito mal-encarados, desses que
atraem latidos e rosnados de todos os cães de toda a vizinhança e começaram a
escrever impropérios em péssima caligrafia com uma lata de tinta spray.
Escreveram
meia dúzia de palavrões, desses que a gente sente vergonha só de pensar, a
filha do dono da casa leu e fingiu que não viu, embora sorrisse de si para si com
uma cara de safada, a mulher do dono da casa leu e ficou indignada, mais preocupada
com a opinião dos vizinhos do que com a minha moral, o dono da casa praguejou e
chamou outro pintor para dar alguns retoques pensando mais em gastar pouco dinheiro
do que numa restauração de verdade, e eu me senti como se sente um guerreiro ferido,
vivo sim, mas com a alma cheia de cicatrizes que só o bálsamo do tempo poderá curar.
SEGUE
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