quinta-feira, 11 de janeiro de 2018




EL CAPITÁN 

1950, 16 de julho. Oito e meia da noite.
A brisa sopra, vinda da orla, e acalma o calor do dia que até há pouco se refletia com intensidade nas calçadas, nas ruas calçadas de paralelepípedos e nos edifícios comerciais, a esta altura desertos.
A avenida que beira o mar ainda guarda alguns noctívagos soturnos que se arrastam e se confundem como garatujas solitárias.
O caudilho mulato, com a expressão arrogante dos vencedores, vaga solitário pela cidade e se embrenha pelas ruas secundárias adornadas por luzes fracas dependuradas em negros postes metálicos cujas bases são forradas por painéis trabalhados na época da proclamação da República.
O rosto do caudilho não traduz alegria, apenas a empáfia daqueles que se sentem superiores.
Ali, nenhuma alma na rua, sequer um cão vadio.
O caudilho entra num bar, um dos poucos que ainda se mantém abertos, pede uma cerveja e observa a cara desconsolada do atendente do outro lado do balcão de mármore e os olhos vermelhos de um homem com a barba por fazer que olha opacamente através de uma taça de conhaque. Preso à parede, um ventilador barulhento procura aliviar o ar abafado com cheiro de cerveja velha.
O caudilho se lembrou da algazarra de horas atrás, da manhã agitada com o alarido das buzinas, dos fogos espocando ao sol a pino e do papel picado que o vento frio da noite agora levanta do chão como uma vassoura invisível.
O clima agora é lúgubre, e a noite se molha com tantas lágrimas que o caudilho, El Capitán Obdulio Varela, de repente se lamenta por haver conquistado aquele título histórico e por haver zombado dos derrotados naquela tarde de sol.
O Rio amanhecera sorrindo e o Redentor, já com os braços abertos sobre a Guanabara, parecia saudar prematuramente o Brasil campeão do mundo.
Afinal, depois de despachar adversários temíveis com uma profusão de gols, o Brasil estava de bem com a vida. O futebol era exuberante, a inflação estava sob controle, gozávamos da total confiança do presidente Dutra e da imprensa ufanista, o povo cantava Chiquita Bacana e Tomara que Chova e bastava um simples empate contra os uruguaios – um time bastante brioso, de acordo com o dicionário esportivo da época, mas de técnica um tanto quanto questionável – para ocuparmos o nosso lugar na história.
Veio a tarde de sol e o estádio novinho, ainda cheirando a tinta, inchava no seu bojo para conter aquelas mais de duzentas mil pessoas em festa, enquanto outros milhões ouviam pelo rádio, que a televisão ainda não havia chegado por aqui.
Ambulantes, pracinhas do exército, senhores engravatados com bigodes conspícuos, mulheres com penteado de rolo, motoristas de ônibus, funcionários públicos, figuras exóticas rindo sem dentes, todos juntos e comungando um só pensamento, uma só alegria que aquele negro desgraçado haveria de surrupiar.
O jogo começou num clima de carnaval. O time brasileiro estava arrasador, e um gol anotado logo no início do segundo tempo prenunciava as delícias de um chope noturno em Copacabana com a faixa de campeão do mundo no peito, tendo o samba da portela – “vem ver quem ainda não viu as riquezas do nosso Brasil” – como fundo musical.
Mas o tempo foi passando e o céu nublou.
Schiaffino anotou o empate, provocando murmúrios aflitivos na plateia. E então veio Ghiggia, matando Barbosa com um tiro cruzado certeiro, e o murmúrio de transformou no mais pesado silêncio coletivo de que se tem notícia.
Tudo foi diminuindo no time brasileiro – a força de um, a raça de outro, a confiança daquele, a imponência de todos – e as pernas foram se acovardando pela cancha enquanto o tempo corria célere em direção ao nosso infame destino.
Acabou o jogo e começaram as lágrimas, com os uruguaios festejando ali bem na frente do nosso nariz, erguendo o troféu de ouro alado, que com certeza viajaria para Montevidéu com a cara amarrada, ele, que teria ficado em nossa terra, tivessem os deuses do futebol sido menos cruéis.
A noite não estava tão fria, e o céu estava até estrelado. A aragem fresca soprava vinda do mar e a luz da lua empalidecia a imensa areia branca.
O mar cantava no seu sobe e desce como se fosse uma sereia seduzindo tudo o que encontrasse ao seu redor.
O caudilho sentiu o impacto da tragédia bem dentro da alma e estremeceu ligeiramente diante do copo de cerveja que sabia amarga.



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