sábado, 13 de janeiro de 2018






UMA NOITE SINISTRA

Conto publicado no livro “À noite, todos os gatos” em 1998.

(Parte 1)

E como se não bastasse. Ainda esta dor de dente!
Dor de dente, dor de parto, dor de angina, dor de rins, todas elas se fundindo de pélvis, costado e peito e se transferindo para o lado esquerdo da boca, a língua grossa como uma esponja de lavar pratos adormecida por aquela pomada preta e milagrosa, Um Minuto, o nome escrito na caixinha de papelão antiga e rústica, como se fosse uma pasta feita de Pílulas Contra, contra a receita médica, contra a lógica, contrassenso, contra o bolso.
Um gole de água morna engolido com uma Neosaldina, um Buscopan, uma Cafiaspirina e uma careta, e depois sigo tateando como um cego, a dor fazendo acender luzes multicoloridas que piscam intermitentemente bem no fundo da retina, meio morto, meio tonto e meio torto, da cozinha para o corredor, do corredor para o banheiro e depois subindo em direção ao quarto.
No banheiro, uma rápida inspeção no espelho que mostra um rosto lívido com a barba por fazer e os cabelos se emaranhando em tufos espetados como se eu tivesse levado um choque de mil e um volts, os olhos fundos parecendo se afundar ainda mais para dentro das órbitas iguais aos de um vilão de cinema mudo, e o pensamento recolhendo lembranças fugidias daquela apresentadora de telejornal que morreu de Agafen e nevralgia do trigêmeo – depois a autópsia revelou um câncer agudo, raro e fulminante atrás do palato – e aquele artista moderno e emancipado que morreu vegetativo por ter abusado de pílulas vegetarianas, descontada a sobredose de morfina pura e o litro e meio de uísque... e saio pelo corredor com vontade de socar a cabeça no balaústre da escada nem que tudo possa vir abaixo, balaustrada, escada, sacada e os vinte e tantos ossos da caveira – parietal, frontal, occipital, hospital.
Tudo começou com uma maldita insônia e todos os seus correlatos.
A rinite, que me irrita e me assola, emparedava as minhas fossas nasais com seus tijolos invisíveis e me fazia acordar sobressaltado a cada dormidela como se sobre a minha cabeça despejassem pás e pás de terra.
Eu fungo, respiro, suspiro, assoo pra dentro e assoo pra fora, tento expulsar os ácaros para ver se o ar me volta e ele, ao contrário, me falta, tudo acompanhado por um belo enjoo e uma azia que me incendeia as entranhas como se eu tivesse uma espiriteira acesa no lugar do esôfago.
A bem da verdade, tudo começou mesmo com a feijoada gorda do meio dia e o torresmo das onze, as batidas de limão com casca e pouco açúcar temperadas de Underberg, e também as de maracujá e as de amendoim e as de coco, que Deus me perdoe, a linguiça frita e a linguiça cozida, e depois do excesso cruel a moleza proverbial e a sonolência anestésica, e então as três horas dormidas, desabado e catatônico como um saco de batatas ou um urso embalsamado na tarde pouco ventilada.
Depois, tudo prosseguiu como num script, aquela ressaca pós-sono, a vontade de não sei o que, a não vontade de que, um fim de festa sem glória, o dramalhão na tevê cheio de lágrimas e desilusões mal dirigidas, os anúncios repetindo e repetindo e repetindo à exaustão e a pachorra se assenhoreando de todo o meu ser e do meu não ser e aí a coçação de saco tão intensa que arrancava nacos da minha epiderme, logo vou ter que encomendar um novo da Suíça, se não novo pelo menos restaurado, sem arranhões, tipo zero quilômetro, embalado para presente.
Aí então a tragédia.
Numa das caminhadas insones quando já corria a madrugada que não tinha fim parei enfastiado diante da geladeira, abri a porta de mil prazeres e não resisti ao flertar com um generoso pedaço de goiabada cascão que piscava para mim – “muito bom para repor o açúcar no organismo”, como dizem os charlatães de plantão – e veio uma senhora dentada e a primeira mastigada quando de inopino o nervo exposto produziu aquela pontada aguda e fina que me encheu de cores, até parece que houve uma repentina interrupção de corrente elétrica, ou então fui eu que perdi o senso da luz, a mão comprimindo a bochecha e o palavrão sendo proferido com todas as honras. 
O medo atávico de dentista se transformou rapidamente em amor à primeira vista e me sobreveio uma intensa saudade do doutor Jacinto, apesar do ruído da broca e do esguicho direcionado da água gelada e do sopro do ar quente comprimido.


SEGUE

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