COMO NASCEM AS CANÇÕES
(Parte 1)
(Artigo escrito para a página da
Academia Poética Brasileira – https//www.facebook/com/academiapoetica/. Este
site é uma publicação da Academia Poética Brasileira, da qual sou membro)
Em teoria, a
música se completa em si mesma apenas com a existência de três elementos: a
melodia, a harmonia e o andamento.
A melodia é uma
sucessão de sons e pausas que confeccionam e modelam o corpo da música,
enquanto que a harmonia é uma sucessão de sonoridades e acordes que vestem o corpo
da música. Já o andamento, também conhecido como ritmo – embora musicalmente
existam sutis diferenças entre o significado dos termos – é o tempo em que os
compassos da peça musical são desenvolvidos para marcar o caminhar da música.
Letra,
percussão rítmica e arranjos são complementos que ajudam a compreensão e a
integração da música no ambiente, mas apesar de muito importantes no resultado
final apresentado podem até ser considerados dispensáveis, pois a música
consegue existir, comover e provocar sensações mesmo na ausência deles.
Esta
constatação não é lá muito agradável para quem, como o cronista, vive mais em
função das palavras do que das notas musicais. Esta dissociação não impede,
porém, que exista uma saudável cumplicidade entre o criador da melodia e o
escritor da letra da música, que muitas vezes se fundem numa única pessoa.
Letristas e
musicistas se completam e juntos transformam letras e notas musicais em
verdadeiras obras de arte, criando sensações e efeitos inefáveis quando a força
tônica das notas entra em comunhão com a acentuação e a força da poesia.
Os compositores
compõem as letras das suas músicas tendo como exercício de inspiração as mais
diversas e improváveis situações.
Todo tipo de
emoção humana pode fazer parte do processo para que o compositor consiga expor
a sua arte: questões de amor, lembranças e saudades, modismos e ideias que
expressam curiosidade, malícia, crítica, ironia, ufanismo, despeito, humor, protesto
social, engajamento político, filosofia popular, homenagens – a pessoas e
lugares – e até oração e religiosidade.
Os musicistas e
letristas na sua grande maioria compõem as suas obras por pura inspiração, embora
alguns o façam por encomenda, desafios ou, em casos extremos, até para serem comercializadas;
mesmo neste caso esta mercantilidade não apaga o sentido da poesia, da melodia
e da harmonia se a música tiver como resultado final aquilo que se chama de
“qualidade” (pela sua amplitude, o conceito de qualidade fica para ser
discutido numa outra ocasião).
A história da
música popular brasileira – e universal – está repleta de curiosidades no que
diz respeito à origem de certas canções, o que mostra a inesgotável força
criativa dos compositores.
-0-
Herivelto
Martins, por exemplo, compôs muitos sambas-canções tendo como tema a vida
conjugal tumultuada que levava com a cantora Dalva de Oliveira. Havia entre
eles um amor bandido – ele um boêmio irrecuperável, ela uma mulher ciumenta e cheia
de caprichos.
Entre as
composições de Herivelto dirigidas à Dalva, temos “Caminhemos” (“Não, eu não posso lembrar que te amei / Não,
eu preciso esquecer que sofri / Faça de conta que o tempo passou / E que tudo
entre nós terminou / E que a vida não continuou pra nós dois / Caminhemos,
talvez nos vejamos depois”), gravada em 1947 por Francisco Alves, e “Cabelos
Brancos” (“Não falem dessa mulher perto de mim / Não falem pra não
lembrar minha dor / Já fui moço, já gozei a mocidade / Se me lembro dela me dá
saudade / Por ela vivo aos trancos e
barrancos / Respeitem ao menos meus cabelos brancos... / ... E agora, em homenagem ao meu fim / Não falem
dessa mulher perto de mim”), gravada pelos Quatro Ases e um Coringa em 1949.
Foi em 1947 que
Herivelto compôs “Segredo”, quando as brigas do casal eram muito intensas e tudo
indicava que a separação já se tornara inevitável (“Teu mal é comentar o passado
/ Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois / O peixe é pro fundo da
rede / Segredo é pra quatro paredes / Não deixe que males pequeninos / Venham
transformar os nossos destinos... / ... Primeiro é preciso julgar pra depois
condenar”), gravada pela própria Dalva.
A separação
aconteceu em 1950, e depois dela Dalva recorreu a dois amigos compositores – J.Piedade
e Osvaldo Martins – para gravar “Tudo Acabado” (“Tudo acabado entre nós, já
não há mais nada / Tudo acabado entre nós hoje de madrugada / Você chorou, eu
chorei / Você partiu, eu fiquei / Se você volta outra vez eu não sei” / Nosso apartamento agora vive à meia-luz /
Nosso apartamento agora já não me seduz / Todo o egoísmo veio de nós dois /
Destruímos hoje o que podia ser depois”).
Seguindo a
mesma linha de raciocínio, ainda em 1950 ela voltou a desabafar com a gravação
de “Errei Sim”, um samba “mea culpa” que Ataulfo Alves havia composto há alguns
anos (“Errei sim, manchei o teu nome / Mas
foste tu mesmo o culpado / Deixavas-me em casa me trocando pela orgia / Faltando
sempre com a tua companhia / Lembro-te agora que não é só casa e comida / Que
prende por toda a vida / O coração de uma mulher / As joias que me davas / Não
tinham nenhum valor / Se o mais caro me negavas / Que era todo o seu amor / Mas
se existe ainda quem queira me condenar / Que venha logo a primeira pedra me
atirar”).
SEGUE
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