domingo, 25 de março de 2018





PARADA DE SUCESSOS!

Estranhamente, para um livro que se propõe comentar aventuras musicais, falar sobre futebol parece francamente uma excrescência, embora vozes saudáveis costumem muitas vezes relacionar as duas coisas e eu próprio ter como atividade cultural tanto uma coisa – música – como a outra – futebol – nas minhas digressões literárias.
Assim, num certo dia de 1953, um rapaz de pernas tortas, a quem chamavam de Garrincha – possivelmente pelo seu hábito de, desde criança, caçar passarinhos do mesmo nome – entrou no gramado de treino do campo do Botafogo, lá na Rua General Severiano.
Garrincha foi escalado para jogar na ponta-direita, num espaço de campo defendido por um lateral de nome Nilton Santos, que desde 1948 reinava absoluto no Botafogo e pintava na seleção brasileira, e que viria a ser chamado enfaticamente de “A Enciclopédia”, pois sabia tudo de futebol.
Garrincha não se importou nem um pouco com a fama do seu adversário e começou nesta mesma tarde a sua campanha mundial de desmoralização dos marcadores que a partir de então, até meados dos anos 1960, teriam a infelicidade de enfrentá-lo.
Dizem aqueles que viram o famoso Nilton Santos tomar um grande baile sem música daquele novato desengonçado, que ao término do treino o lateral foi o primeiro a recomendar a sua contratação ao então presidente Ibsen de Rossi.
Considerando que este duelo aconteceu num treino sem maiores pretensões, num dia de semana sem qualquer significado especial e cercado de nenhuma expectativa, a quantidade de gente que garante ter estado presente é assustadora, pois de longe suplantaria a lotação do estádio, que era de vinte mil pessoas.
Este prólogo vem a calhar quando se fala do nascimento da bossa nova.
Aqui não se trata de vinte mil, mas de vinte milhões de brasileiros que de uma maneira ou de outra contam como vivenciaram o evento e como as suas vidas mudaram a partir de então.
Parece que todos passaram por uma experiência semelhante à que eu passei ao serem apresentados à novidade que estremeceria as bases da cultura musical brasileira e modificaria o seu futuro de forma definitiva.
Meu relato é semelhante a milhares de relatos correlatos e a sensação de que algo de muito importante estava acontecendo com a música brasileira é compartilhada com estes milhares de felizardos.
Era 1958, talvez agosto, talvez setembro. Meio-dia.
O sol brilhava, o céu estava colorido de um azul radiante, o Brasil ainda estava eufórico com a conquista da Copa do Mundo na Suécia em junho e tudo parecia cor-de-rosa.
Eu estava no pequeno jardim da minha aconchegante casa no bairro da Aclimação, em São Paulo, que era cercado por um gradil baixo de madeira no estilo Hollywood, com o portãozinho acolhedor para as visitas bem intencionadas; algumas florezinhas bem distribuídas salpicavam o verde de amarelo, rosa e violeta, enquanto lá na cozinha, nas mãos da cozinheira minha mãe, o feijão exalava seu perfume generoso.
O aparelho de rádio – uma portentosa peça do móvel conjugado rádio-e-vitrola dotada de um moderníssimo olho mágico verde-esmeraldino – estava ligado, como sempre acontecia nessa hora, no programa “Parada de Sucessos”, transmitido pela Rádio Nacional de São Paulo, que apresentava as músicas mais tocadas e os discos mais vendidos da semana, na voz vibrante de Hélio de Alencar.
O bordão, anunciado ao som de “Saint Louis Blues” (William C.Handy) tocado pela orquestra de Glenn Miller era – “Paraaada de Sucessosss! – um desfile das músicas que o povo consagraaa! – patrocínio Lojas Assumpção, uma loja em cada bairro para melhor servir você!” – e servia de cenário para 10 caprichados hits da época, entre eles “Balada Triste” (Dalton Vogeler e Esdras Silva) com Agostinho dos Santos, “Escultura” (Adelino Moreira e Nelson Gonçalves) com Nelson Gonçalves,  Interesseira” (Bidu Reis e Murilo Latini) com Anisio Silva, “Meu Mundo Caiu” (Maysa) com Maysa, as internacionais “Cachito” (Consuelo Velásquez) com Nat ‘King’ Cole, “You Are My Destiny” (Paul Anka) com Paul Anka, e as versões “Love Me Forever” (Beverly Guthrie e Gary Lynes) com Lana Bittencourt, “Patrícia” (Pérez Prado) com Emilinha Borba e “Diana” (Paul Anka) com Carlos Gonzaga.
Uma selva bastante diversificada, como se vê, reunindo no mesmo pacote sambas-canções, baladas, boleros e a pop music da época.
Esta diversificação de certa forma incomodava uma certa parcela de jovens que, como eu, se interessavam pelo jazz ou por um tipo de música que contivesse uma mensagem que fosse poética e harmonicamente diferenciada – Sylvia Telles, Os Cariocas, Dick Farney, Lucio Alves, Johnny Alf, Chet Baker, Barney Kessell, April Stevens, Julie London, The Hi-Lo’s – fugindo das estruturas comuns, das paixões desesperadas, dos dós de peito ou das rimas pouco sutis.
A gente sabia, no entanto, que estas músicas não vendiam o suficiente para estar numa parada de sucessos e cada qual se contentava em curti-las no seu ambiente particular.
Eu e a minha turma, por exemplo, ingeríamos altas doses de boa música – e um outro tanto de gim-tônica – no recôndito do nosso garage club, batizado com o sugestivo nome de Bop Street, nome de uma música gravada pelo grupo de rock “Gene Vincent & seus Blue Caps”. Ou então nos revezávamos nas casas de outros amigos para ouvir as novidades que faziam bem para os ouvidos e para o espírito.
De volta àquela hora de almoço que iria mudar a história do mundo, as músicas apresentadas no programa eram anunciadas na ordem inversa, começando pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com Hélio de Alencar gritando bem ao seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, João Gilberto, uma novidade em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me deixa estático em frente ao portão. Não é samba, não é choro, não é samba-choro. O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito universal que regula o bom gosto musical.
Nos próximos dez anos ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional e absolutamente discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, existe um divisor de águas entre aqueles que o idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de interagir com o público.
Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de casa, apanhei o trolleybus e fui ao chamado centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para adquirir no ato o disco “Chega De Saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos Jobim (como no caso de Copinha, vim saber deste detalhe muito depois), o que colaborou com a genialidade da gravação; no lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP seria lançado em 1959 incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli) e “Brigas, Nunca Mais” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutanti, teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas que incluem a mim, a minha turma da Bop Street, a turma carioca do Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os amigos do jazz, o pessoal de Ipanema e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as portas do Reino do Céu.

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