quarta-feira, 7 de março de 2018






O FANTASMA DA FM

(Conto publicado em 1992 no livro “O Fantasma da FM”)

(Parte 3)

Ronaldo parece um galã de radionovela, com a sua voz sensual e o seu jeitinho de dizer as coisas, com seus trejeitos e maneirismos e com seu modo de falar no ouvido da ouvinte atenta, de ler notícias com credibilidade, de dizer as horas e de declinar o prefixo da emissora.
Neste fim de noite, enquanto Adalgisa se divide entre discos e folhas de programação, ele está envolvido entre beijos e abraços com a namorada enamorada, num romance de literatura que nasceu de um simples telefonema, com um amor vocal à primeira vista e à primeira audição, ao primeiro encontro e ao primeiro toque de mão.
Toda aquela paixão agora se desenrolava dentro do espaço acanhado do carro estacionado na rua deserta, debaixo de um poste de iluminação, com os vidros embaçados servindo de cortina para o olhar eventual do guarda noturno curioso que se aproxima, passa e apita.
As paixões seguem desenfreadas como se eles fossem dois animais enjaulados, com o tempo passando rápido demais – “se o tempo entendesse de amor devia parar” – como diz o samba-canção que a rádio não toca.
Ronaldo está perdidamente apaixonado, mas vai mantendo seu romance em segredo, um mistério compartilhado apenas e somente a dois, nas poltronas reclinadas, seja se incendiando em êxtase ou apenas trocando olhares cúmplices e acariciantes, ou então naquele barzinho escondido onde as mãos se afagam e os olhares se cruzam cheios de meiguice ao som de Caetano Veloso cantando qualquer coisa, cantando “Qualquer Coisa” diante do prato de queijos sortidos e de dois copos de cuba-libre banhados de suor.
Ronaldo tem seus problemas para solucionar, o salário magro da rádio mal dá para pagar a prestação do carro dos bancos reclináveis e do rádio-roca-fitas que lhe acompanha na voz dos seus colegas locutores, na voz sedosa de Adalgisa, sem contar com a esposa, em casa, desconfiada dos seus horários nada ortodoxos – ou ele está “no ar” falando com as suas ouvintes “esta aqui vai com todo carinho pra gatinha do trezentos e vinte e dois” ou está inventando alguma gravação “after hours”.
Para ele, que trabalha pela manhã, sobra o burburinho da massa, os técnicos entrando e saindo do estúdio para revisar a aparelhagem e registrar no livro de ocorrências que não existem ocorrências, embora o fone de ouvido continue surdo do lado esquerdo e o ruído das cartucheiras faça lembrar uma máquina de moer carne. E surgem os programadores para constatar se a programação está sendo seguida e vêm os mercenários do departamento comercial bicando como urubus sobre carniça para ter certeza de que aquele anúncio da nova pizzaria da cidade que faz a lasanha da “mamma” está sendo devidamente divulgado. Sobra também um pouco de tempo para atacar de “free-lancer” no noticioso do meio dia na emissora concorrente, o que ajuda com um pouco mais de dinheiro para colaborar no aluguel e na despesa da casa, com a mulher, professora do primeiro grau, participando das perdas e danos.
Às vezes acontece de Ronaldo substituir Adalgisa nas madrugadas moduladas dentro daquela saleta obscura e fria qual uma cela de prisão, com o ar condicionado desregulado provocando arrepios na nuca e a sensação estranha de que há alguém espiando com o olhar cheio de ódio por detrás do vidro retangular da porta que ameaça ser aberta de repente, deixando possivelmente entrar a sombra assassina de um monstro que vai justiçá-lo livrando-o dos seus pecados na ponta de uma faca. 
Nessa hora de espanto ele sente a falta das mãos serenas da namorada a afagar seus cabelos e daqueles lábios polpudos como fruta madura.
Mas a porta do estúdio, com o seu vidro colocado no alto, permanece fechada e o corredor continua em silêncio sob a vigilância de um bebedouro e de um quadro de avisos – “É proibida a presença de estranhos (e de fantasmas) no estúdio de locução”.
Ronaldo conversa com os ouvintes e enche a sala de som.

SEGUE

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