CONTRANEXO
(Excerto)
À noite todos os gatos são pardos, menos
aquele ali, branco como a palidez de Rebeca, todo enroscado sobre o assento da
cadeira de palha trançada, ele que me fita e me analisa e me inquire e me
acompanha com o olhar de filósofo que só os gatos sabem ter, os olhos
verde-cinza enigmáticos diferentes dos olhos negros pragmáticos de Rebeca,
captando meu pensamento ou pelo menos fingindo que me entende, o que seria no
mínimo estranho, pois nem eu mesmo me entendo.
Do lado de fora desta bodega de aspecto
rústico que lembra uma velha estalagem balança uma placa de madeira esculpida a
mão e presa por duas correntes e uma haste de metal, rangendo como uma ponte
levadiça, com os dizeres “Restaurante do Dante – Comida Caseira”, um nome bem a
calhar pelas perspectivas da noite e para o meu momento histórico – “lasciate ogni speranza voi ch’entrate”.
Enquanto trespasso o limiar da porta sem
maiores rebuços, na sua soleira de mármore gasta pelos pés do tempo, o gato me
acompanha com o olhar, o pescoço girando quinze graus de preguiça e uma orelha
– vejam só, apenas uma orelha, a direita – se ergue como se sintonizasse ao longe o resquício de um ruído de algum
passo abafado ou como se ouvisse o barulho infernal fabricado pela minha mente,
um silvo profundamente agudo que flete e reflete dentro da minha caixa craniana
como uma bola de bilhar no rebordo da mesa, como um eco numa caverna, como um
grito de náufrago.
-0-0-0-
Talvez o vulto fosse mesmo Rebeca, com
sua cara de desvario, com seu sorriso obsceno, com seus braços de serpente, com
sua língua de mel, talvez fosse a expressão do rosto da morta, meio enforcada e
meio afogada.
Dante me acompanha até a soleira de
mármore para ter certeza de que vou mesmo embora, dou um derradeiro adeus para
o gato e já não vejo o fantasma de Rebeca a seu lado.
O gato se espreguiça como um ponto de
interrogação quando o ruído da porta de enrolar atravessa a noite como uma
facada. Ele me olha com o olhar de boa noite que só os gatos sabem ter.
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