sábado, 29 de setembro de 2018





SOLILÓQUIO
(Excerto)

O que mais me aborrece em morrer é a primeira noite depois do funeral, é ter que dormir cercado de mortos que eu não conheço, sem uma companhia que me cutuque as costas pedindo para eu parar de roncar.
Na verdade, me incomoda também o fato de não mais roncar, coisa que se acontecesse iria colocar este campo santo em polvorosa e provocar, após o primeiro espanto, reportagens internacionais e pesquisas metacientíficas tão intensas que se haveriam de propagar desde o Titicaca até o Katmandu.
No entanto, apesar da vizinhança silenciosa e insípida, o que eu vou gostar de fato é da esperada escuridão e da ansiada tranquilidade dentro do meu silêncio, nada de portas batendo nem de grilos cricrilando, nada de chuva tamborilando sobre a terra semi-revolta nem o prolongado pio da coruja, nada poderá incomodar o meu sono profundo aqui nesta caixa almofadada de primeira categoria qual um leito acetinado de um grande hotel cinco estrelas, fruto da contribuição de amigos dada e exiguidade de fundos do meu bolso sem fundo por ocasião do passamento – no máximo daria para eu me acomodar em um caixote de bacalhau fosse a escolha feita de moto próprio.

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Sinto-me leve como nunca me senti e respiro o ar da tranquilidade, muito embora repouse esta carcaça nauseabunda num buraco sem conforto, minha atual propriedade, assim como foram minha propriedade todas as cadeiras nas quais eu sentei – enquanto sentado – todos os livros que eu li mesmo sendo emprestados e todos os cinemas e teatros que eu frequentei, pois enquanto eu lá estava aquilo era realmente meu, assim como sempre foi meu todo este mundo sem o qual ou com o qual eu não faço absolutamente nada, por uma questão de coerência.
Recordo novamente a minha última solenidade, iguais a tantas em que já estive presente e a tantas que deverei por força assistir por conta de habitar no natural cenário e entendo que de nada vale participar de esquemas para amealhar fortunas, nem a posse do ouro e da prata, nem espionar a vida alheia e comentar seus desvarios, pois a verdade absoluta se resume a uma chama que se apaga e a uma luz que se acende, dessas que ninguém vê mas que norteia os nossos passos como se fosse um farol.
Penso ver um anjo, mas é só um pombo, penso ver um gato, mas é uma ratazana de cemitério.
O primeiro intruso se aproxima na manhã enevoada, cruza o portão em direção ao lado de dentro e eu então me recolho para dentro do meu eu conhecido.
Requiescant in pace.  

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