SOLILÓQUIO
(Excerto)
O que mais me aborrece em morrer é a
primeira noite depois do funeral, é ter que dormir cercado de mortos que eu não
conheço, sem uma companhia que me cutuque as costas pedindo para eu parar de
roncar.
Na verdade, me incomoda também o fato de
não mais roncar, coisa que se acontecesse iria colocar este campo santo em
polvorosa e provocar, após o primeiro espanto, reportagens internacionais e
pesquisas metacientíficas tão intensas que se haveriam de propagar desde o
Titicaca até o Katmandu.
No entanto, apesar da vizinhança
silenciosa e insípida, o que eu vou gostar de fato é da esperada escuridão e da
ansiada tranquilidade dentro do meu silêncio, nada de portas batendo nem de
grilos cricrilando, nada de chuva tamborilando sobre a terra semi-revolta nem o
prolongado pio da coruja, nada poderá incomodar o meu sono profundo aqui nesta
caixa almofadada de primeira categoria qual um leito acetinado de um grande
hotel cinco estrelas, fruto da contribuição de amigos dada e exiguidade de
fundos do meu bolso sem fundo por ocasião do passamento – no máximo daria para
eu me acomodar em um caixote de bacalhau fosse a escolha feita de moto próprio.
-0-0-0-
Sinto-me leve como nunca me senti e
respiro o ar da tranquilidade, muito embora repouse esta carcaça nauseabunda
num buraco sem conforto, minha atual propriedade, assim como foram minha
propriedade todas as cadeiras nas quais eu sentei – enquanto sentado – todos os
livros que eu li mesmo sendo emprestados e todos os cinemas e teatros que eu
frequentei, pois enquanto eu lá estava aquilo era realmente meu, assim como
sempre foi meu todo este mundo sem o qual ou com o qual eu não faço
absolutamente nada, por uma questão de coerência.
Recordo novamente a minha última
solenidade, iguais a tantas em que já estive presente e a tantas que deverei
por força assistir por conta de habitar no natural cenário e entendo que de
nada vale participar de esquemas para amealhar fortunas, nem a posse do ouro e da
prata, nem espionar a vida alheia e comentar seus desvarios, pois a verdade
absoluta se resume a uma chama que se apaga e a uma luz que se acende, dessas
que ninguém vê mas que norteia os nossos passos como se fosse um farol.
Penso ver um anjo, mas é só um pombo,
penso ver um gato, mas é uma ratazana de cemitério.
O primeiro intruso se aproxima na manhã
enevoada, cruza o portão em direção ao lado de dentro e eu então me recolho
para dentro do meu eu conhecido.
Requiescant
in pace.
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