sábado, 22 de setembro de 2018





POUCOS TEXTOS COM CLAUDETE
(Excerto)

Se é frio, não o sinto.
Tenho o calor que me percorre as veias e um ardor no rosto crepitante que deve estar vermelho, e não de vergonha.
Por mais que eu me olhe não consigo me ver, nem meus óculos me veem, eles principalmente, se eu estivesse fora de mim não seria a mesma coisa. Ou, pensando melhor, talvez fosse, e eu não me visse nem assim, como um fantasma não se vê, e eu devo ser um fantasma, vagando assim, desse jeito.
Em outros termos, digo que me encontro, mesmo não me encontrando, girando como um pião – cerca de trinta graus de excentricidade – um pendulante satélite rodando próximo às as portas fechadas, riscando o chão com minha ponteira ao redor das latas de lixo.
Não sou excêntrico, estou excêntrico, isso sim.
E aquela luz amarela projeta minha sombra de marionete na calçada.
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Esperei por longo tempo e nada.
Arrisquei abrir a porta, empurrei lentamente e ela cedeu aos poucos, rangendo nos seus gonzos.
Nunca havia percebido aquele retrato de Monalisa na parede fronteira. Já havia notado o piano e os móveis escuros, as tapeçarias e o relógio de algarismos romanos na parede, o tabuleiro de xadrez desarrumado também, mas o retrato nunca. Talvez Leonardo tivesse passado a noite naquela sala pincelando até as últimas pinceladas aquele olhar anêmico e bovino, e aquele sorriso, ah! aquele sorriso, enigmático ou simplesmente asmático... 
De repente o quadro abriu um esgar demoníaco e o rosto se moveu, espanto, espanto, não era um quadro, era ela, a mulher, que me esperava com os olhos de visagem.

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