quarta-feira, 3 de outubro de 2018





A MACHADINHA
(Excerto)

Ao badalar da meia-noite ele se mira no espelho quase apagado pela luz fraca de quarenta velas que vem da lâmpada incandescente sobreposta ao armário do quarto, e vê seus olhos fundos e cansados, o cabelo como sempre em desalinho e a barba geralmente por fazer, a cara mal lavada.
Ele caminha pelo cômodo à procura dos seus pertences, uma pequena maleta com alguns apetrechos esparsos atirada no canto da cama e um pequeno crucifixo de metal escurecido que jaz sobre a mesa ao lado de uma bacia com água.
Faz frio. Ele veste uma camisa de flanela xadrez por sobre a camiseta de um branco encardido e coloca por cima da camisa um casaco já bastante usado, enfia o boné na cabeça, apanha a maleta e sai pela porta escura de madeira envelhecida portando no rosto uma expressão dura e embrutecida e os olhos opacos dos desajustados. Tranca a porta com uma chave que traz presa a uma argola e a enfia no bolso lateral do casaco junto com o crucifixo Desce então o lance de escadas que o separa da porta da rua, a madeira rangendo a cada passo dado.
A noite está terrivelmente feia, uma dessas noites propícias para grandes crimes, assassinatos sem testemunhas.
Ele caminha lentamente pela rua como se procurasse algo, levanta a gola do casaco para suportar a navalha de vento que lhe rasga a nuca e vê a própria sombra na calçada, ora se alongando, ora dele se aproximando a cada poste alcançado, na sua luz amarela com jeito de lamparina.
O chão de pedras brilha umedecido pela neblina espessa e a sua mente é um torvelinho confuso, a cabeça cheia de imagens capazes de atentar o próprio fute, a mão apertando com força o crucifixo e a chave como se fossem dois talismãs.
Um guincho repentino e um ruído de latas batendo contra as pedras são os únicos sons que se interpõem à sinfonia de passos, e uma ratazana correndo em direção ao bueiro de outro lado da rua quebra a paragem da cena.      


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