domingo, 7 de outubro de 2018






O MURO
(Excerto)

Penso, logo existo.
A frase pode não ser original, mas retrata meu estado de espírito.
Não apenas penso como também observo e perscruto as mazelas deste mundo desmazelado, pelo menos do meu mundo, que alcança a miserável distância de uns doze metros – incluindo o portão – com árvores frondosas tapando a minha visão periférica à direita e à esquerda, qual poderosos antolhos balançantes.
Felizmente não falo, o que me impede de incorrer em certas bobagens que já causaram o pranto, o ódio, a guerra e a discórdia desde que se fez o verbo.
Na minha quietude e discrição vejo o mundo desfilar à minha frente como se eu estivesse acomodado em um sólio sobre um palanque ou numa vitrine analisando os espertos e os tolos, os educados e os sujos, os ricos e os pobres, pessoas, animais e objetos.
Sou branco – e aqui não vai preconceito algum – pois poderia ser cor-de-rosa, azul claro e até amarelo, já vi alguns semelhantes à distância que eram marrom e já vi alaranjado, embora nunca tenha visto um muro pintado de preto.  
Tive a sorte de ter sido cuidadosamente rebocado, pintado e retocado há apenas poucos dias, e também tive a sorte de não receber na indumentária nenhum adorno medieval como cacos de vidro, pregos ou fieiras de arame farpado, como uma penitenciária.
Originalmente nasci nu como um bom nascituro que se preza, obviamente nu e mal acabado, pois o meu criador, quer por economia quer por desconhecimento resolveu me rechear com pedaços irregulares de tijolos e usar barro como argamassa, deixando-me com aquela sensação de vazio nas entranhas e com aquela dolorosa cor de terra.
Aí então a casa foi vendida e o novo proprietário resolveu me embelezar, afinal tudo estava sendo pintado e retocado com a melhor das tintas e com o melhor dos apuros, incluindo a construção de caramanchões onde futuramente flores deveriam florir, uma varanda larga e espaçosa onde futuramente o chão deveria brilhar e um gramado onde futuramente a grama deveria alcatifar em meio a aráceas e rododendros, e então eu fui finalmente pintado de um branco angelical.
A pedido do dono da casa, uns homens de broca em punho afixaram do meu lado direito, próximo ao portão, uma placa de bronze com o número cento e trinta e três, o que me deixou muito envaidecido, pois agora eu também tenho um número de identificação.

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