O MURO
(Excerto)
Penso, logo existo.
A frase pode não ser original, mas
retrata meu estado de espírito.
Não apenas penso como também observo e
perscruto as mazelas deste mundo desmazelado, pelo menos do meu mundo, que
alcança a miserável distância de uns doze metros – incluindo o portão – com
árvores frondosas tapando a minha visão periférica à direita e à esquerda, qual
poderosos antolhos balançantes.
Felizmente não falo, o que me impede de
incorrer em certas bobagens que já causaram o pranto, o ódio, a guerra e a
discórdia desde que se fez o verbo.
Na minha quietude e discrição vejo o
mundo desfilar à minha frente como se eu estivesse acomodado em um sólio sobre
um palanque ou numa vitrine analisando os espertos e os tolos, os educados e os
sujos, os ricos e os pobres, pessoas, animais e objetos.
Sou branco – e aqui não vai preconceito
algum – pois poderia ser cor-de-rosa, azul claro e até amarelo, já vi alguns
semelhantes à distância que eram marrom e já vi alaranjado, embora nunca tenha
visto um muro pintado de preto.
Tive a sorte de ter sido cuidadosamente
rebocado, pintado e retocado há apenas poucos dias, e também tive a sorte de
não receber na indumentária nenhum adorno medieval como cacos de vidro, pregos
ou fieiras de arame farpado, como uma penitenciária.
Originalmente nasci nu como um bom
nascituro que se preza, obviamente nu e mal acabado, pois o meu criador, quer
por economia quer por desconhecimento resolveu me rechear com pedaços
irregulares de tijolos e usar barro como argamassa, deixando-me com aquela
sensação de vazio nas entranhas e com aquela dolorosa cor de terra.
Aí então a casa foi vendida e o novo
proprietário resolveu me embelezar, afinal tudo estava sendo pintado e retocado
com a melhor das tintas e com o melhor dos apuros, incluindo a construção de
caramanchões onde futuramente flores deveriam florir, uma varanda larga e
espaçosa onde futuramente o chão deveria brilhar e um gramado onde futuramente
a grama deveria alcatifar em meio a aráceas e rododendros, e então eu fui
finalmente pintado de um branco angelical.
A pedido do dono da casa, uns homens de
broca em punho afixaram do meu lado direito, próximo ao portão, uma placa de
bronze com o número cento e trinta e três, o que me deixou muito envaidecido,
pois agora eu também tenho um número de identificação.
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