O GATO CINZA
(Excerto)
Louco não sou, podem crer que disto eu
tenho certeza.
Então, é possível a um louco possuir
consciência, e às vezes duvidar do que vê e do que ouve como qualquer indivíduo
tido como normal?
É possível a um louco se questionar e questionar
as coisas?
Pois bem, eu me questiono a cada
instante e a cada fato, ao ver e ouvir as coisas mais insanas, tecendo a
autocrítica e a crítica e rotulando os acontecimentos e as pessoas, coisas que
somente aquele que não é louco consegue fazer com ordem e método.
É claro, dirão, não só os loucos, mas
também os bêbados, os fracos, os covardes, os mentirosos, os assassinos
premeditados e os psicopatas de toda sorte dizem a mesma coisa – jamais admitem
ser aquilo que na verdade o são – quer para preservar o respeito da sociedade
hipócrita, quer por serem eles mesmos coniventes com a sua falsa verdade.
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Contudo, eu já me teria transformado
certamente no mais desvairado dos loucos e no mais feroz dos desajustados se
levase em conta as coisas que tenho visto e ouvido, as incongruências do
comportamento humano, a falácia dos dominantes e a falência daqueles tidos como
sérios.
Aprendi a conviver com farsantes,
larápios e canalhas de todas as espécies, com falsos profetas e com
dissimuladores, com exegetas pragmáticos e com néscios irresponsáveis, com
personalidades de barro e com insignificâncias de escol, e enquanto todos
pensavam estar me enganando, da bajulação à fraude, do sorriso vazio ao
silêncio suspeito, eu conhecia de cada um em pormenores o pensamento espúrio e
a intenção pouco louvável, e em cada um eu pretendia estar acreditando só para
vê-los satisfeitos em pensar que me enganavam, pobres idiotas que são.
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A porta do quarto, que está fechada,
separa a minha intimidade do corredor
que leva à biblioteca, que também serve de armazém de entulhos e desemboca
finalmente num jardim escuro, com o musgo cobrindo ao muros, repleto de plantas
estranhas de um verde carregado e sem flores.
Mesmo fechada, a porta acaba sendo um
obstáculo frágil e inútil que poderá se escancarar a qualquer momento deixando
entrar a mulher da faxina com suas ganas de limpeza, um assassino furibundo com
o seu maldito propósito, talvez todas as mazelas do mundo com suas inevitáveis
consequências, um inseto de proporções gigantescas com sua carapaça furta-cor
ou simplesmente uma lufada de ar.
Ou até – quem sabe? – o gato cinza.
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