sábado, 13 de outubro de 2018






O GATO CINZA
(Excerto)

Louco não sou, podem crer que disto eu tenho certeza.
Então, é possível a um louco possuir consciência, e às vezes duvidar do que vê e do que ouve como qualquer indivíduo tido como normal?
É possível a um louco se questionar e questionar as coisas?
Pois bem, eu me questiono a cada instante e a cada fato, ao ver e ouvir as coisas mais insanas, tecendo a autocrítica e a crítica e rotulando os acontecimentos e as pessoas, coisas que somente aquele que não é louco consegue fazer com ordem e método.
É claro, dirão, não só os loucos, mas também os bêbados, os fracos, os covardes, os mentirosos, os assassinos premeditados e os psicopatas de toda sorte dizem a mesma coisa – jamais admitem ser aquilo que na verdade o são – quer para preservar o respeito da sociedade hipócrita, quer por serem eles mesmos coniventes com a sua falsa verdade.
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Contudo, eu já me teria transformado certamente no mais desvairado dos loucos e no mais feroz dos desajustados se levase em conta as coisas que tenho visto e ouvido, as incongruências do comportamento humano, a falácia dos dominantes e a falência daqueles tidos como sérios.
Aprendi a conviver com farsantes, larápios e canalhas de todas as espécies, com falsos profetas e com dissimuladores, com exegetas pragmáticos e com néscios irresponsáveis, com personalidades de barro e com insignificâncias de escol, e enquanto todos pensavam estar me enganando, da bajulação à fraude, do sorriso vazio ao silêncio suspeito, eu conhecia de cada um em pormenores o pensamento espúrio e a intenção pouco louvável, e em cada um eu pretendia estar acreditando só para vê-los satisfeitos em pensar que me enganavam, pobres idiotas que são.
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A porta do quarto, que está fechada, separa  a minha intimidade do corredor que leva à biblioteca, que também serve de armazém de entulhos e desemboca finalmente num jardim escuro, com o musgo cobrindo ao muros, repleto de plantas estranhas de um verde carregado e sem flores.
Mesmo fechada, a porta acaba sendo um obstáculo frágil e inútil que poderá se escancarar a qualquer momento deixando entrar a mulher da faxina com suas ganas de limpeza, um assassino furibundo com o seu maldito propósito, talvez todas as mazelas do mundo com suas inevitáveis consequências, um inseto de proporções gigantescas com sua carapaça furta-cor ou simplesmente uma lufada de ar.
Ou até – quem sabe? – o gato cinza.

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