terça-feira, 18 de dezembro de 2018






DESVENTURAS DE UM FIM DE TARDE
(Excerto)

A maré baixa colocava o mar lá na lonjura, e uma imensa faixa de areia úmida separava a água esverdeada – que no momento se apresentava tranquila, parecendo uma imensa lagoa – dos bares rústicos de madeira construídos sobre a duna.
          O céu totalmente azul dispensava qualquer nesga de nuvem, e o sol assoprava o seu bafo quente sobre a pictórica paisagem tropical.
          Espalhados pela areia podiam ser vistos pequenos restos de coisas que o mar havia vomitado antes de começar o seu recuo, num fenômeno que se repetia a cada dia por incontáveis séculos.
          A orla estava quase deserta – afinal era uma terça-feira, três horas da tarde – e poucos boas-vidas tinham tempo para se aventurar a uma caminhada na praia ou a um instante de lazer debaixo daquela quase brisa que soprava para reduzir o calor. Algumas crianças aproveitavam a calmaria da beira da praia para brincar, acompanhadas por senhoras maduras com cara de avó. Um ou outro cachorro exercitava sua corrida pouco olímpica à cata de gravetos atirados pelos guris. Um velho senhor fazia meias flexões até onde sua coluna dorsal podia aguentar.
          O bar da praia também estaria vazio, não fossem as presenças de um casal que trocava juras de amor numa mesa distante e de dois inseparáveis amigos, que tendo chegado àquele paraíso ainda pela manhã enfileiravam sobre e sob a mesa uma quantidade razoável de garrafas de cervejas.
           Zé Maria era um bancário aposentado que há tempos convencera a sua mulher que, por determinação médica, necessitava de caminhadas na praia pelo menos duas vezes por semana – e o fazia religiosamente todas as terças e quintas-feiras, sob a supervisão do próprio médico, chamado Parmênio, também aposentado.
            Enquanto estava sóbrio, Zé Maria costumava se dirigir ao antigo facultativo pelo nome de “doutor Parmênio”, em homenagem à sua vida hipocrática pregressa mas com o passar dos goles ia perdendo a reverência.        
Parmênio costumava dizer que a melhor cura para o estresse, esta inconveniência moderna que pouco a pouco vai minando a nossa capacidade vital, era espairecer e conversar com amigos, de preferência fora do ambiente doméstico, quebrando a tensão com uma cerveja gelada e deixando os problemas do lado de fora do bar.
A cumplicidade entre os dois era, portanto, filosófica e fortemente sedimentada em malte e lúpulo, e uma amizade fermentada dessa forma só podia ficar fortalecida.
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O zênite do dia havia ficado para trás já havia cinco horas e o sol estava finalizando o seu cruzeiro diário quando Parmênio e Zé Maria decidiram que já era hora de voltar para as suas casas, onde os esperava a peroração habitual das esposas.
Afinal, eles já haviam discutido tudo o que o conhecimento e a embriaguez lhes permitiram – fatos atuais sobre política e futebol, fatos de sempre sobre problemas familiares e fatos muito antigos e difusos, como conquistas amorosas nos áureos tempos em que a testosterona estava em alta – e haviam inclusive resolvido boa parte dos problemas do mundo.
O mar recomeçava a subir novamente em direção às pernas do bar, e o céu azul já adquirira uma cor de chumbo, exibindo lá no alto a mentirosa estrela D’Alva.



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