OBSERVAÇÕES
DE UM PENSAMENTO
(excerto)
E eu fico estático no meio das pessoas, observando
escondido.
Não é preciso ser profeta: é preciso ser
sombra. Estar sempre à espreita, nas esquinas e nos cantos, nas ruas e nos becos,
nas atitudes e nos gestos.
Caminhando sempre nos interstícios, eu
pertenço a um mundo irreal, abro cortinas e desfolho diários, vasculho gavetas
e leio pensamentos e sigo homens e mulheres onde quer que estejam, fazendo o
que fizerem, a intenção, o amor, o crime.
Procuro habitar em cada vão do chão, em
cada fresta de janela, em cada pálpebra e em cada espaço vazio.
Participo de cada drama e de cada
comédia, prevejo comédias e dramas, mas não interfiro nos dramas ou nas
comédias. Fico sentado no lustre que balança apesar do meu imponderável peso ou
me disfarço de folhagem enquanto lagartas passeiam pelo meu braço e sequer
fazem cócegas. O murmúrio das folhas se transforma em gotas, sou eu me
transformando em chuva e me atirando para a dentro do terraço, escorrendo pelo
pescoço de Eliana.
-0-0-0-
André saiu de casa e se dirigiu para o
outro lado da linha do trem, ia à procura de Eliana.
O céu estava escuro, era maio e o sol ia
dormir no fim do outono. Lá longe Eliana já lhe acenava, mas ele não notava e seguia
mecanicamente, sem pensar em nada.
O vento soprava suave e sem estardalhaço,
algumas aves teimavam em revolutear próximas à sua cabeça e algumas nuvens
anunciavam um céu tranquilo e sem surpresas para as próximas horas.
Alguma inquietude, no entanto, parecia
vir de longe, pois um estranho arfar foi se avolumando e tomando corpo sem no
entanto ser percebido pelos seus ouvidos distantes e distraídos.
O estranho som foi crescendo como um rufar
de tambores.
Aquele ruído estrondoso bem poderia ser o
de um tufão devastando a terra inteira. Bem poderia ser a queda de rochas
esmagando uma praia durante uma tempestade. Bem poderia ser uma avalanche,
levando tudo de roldão. Bem poderia ser uma fábrica furiosa em pleno
funcionamento, com seus pulmões arfando vapor. Bem poderiam ser trovões frutos
de uma tormenta que se aproximava, irada, ou canhonaços de uma batalha distante.
Mas também poderia ter sido o trem.
E era o trem.
Talvez naquele instante André estivesse pensando
nos olhos meigos de Eliana, talvez estivesse pensando do que dizer ao chegar
junto dela, talvez estivesse pensando no amanhã, nos amanhãs.
A composição de carga o apanhou em cheio.
André deu uma volta no ar sem dar um
grito sequer, e o ruído dos ferros abafou o ruído do baque.
-0-0-0-
Ainda agora, nos olhos arregalados de
Eliana, a cena se repete. A massa humana rodopiando na sua retina, mãos e pernas
se agitando como uma aranha.
Eu, que antevejo, vejo e revejo a cena
como um espectador por detrás de um vidro já sou gota seca na sua blusa que a
chuva molhara.
Passado o drama virá um novo drama.
Acho que vou voltar para dentro do meu cérebro.
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