quinta-feira, 15 de agosto de 2019






A IRA  
(Excerto)


Tudo andava às mil maravilhas naquela cidadezinha no sul da França, Saint Jean des Canards. Monsieur Patou caminhando placidamente pela rua arborizada, as flores florindo na primavera, o sol resplandecente furando as copas das árvores, os passarinhos gorjeando em francês e alguns Jacques, Jean-Pierres e Charlottes se cumprimentando e se sorrindo.
O vendedor de sorvetes oferece à criança um copinho com “crème des pommes” enquanto ao fundo a jovem Geneviève tem um “frisson” ao cruzar seu olhar com o de Laurent, um vizinho tímido e agradável que falava com os olhos tudo aquilo que os lábios não ousavam pronunciar, como dizia o poeta.
Monsieur Patou consulta o seu relógio, aqueles de bolso, a  corrente fazendo um arco por cima da virilha, é quase hora do almoço, vamos provar os quitutes preparados por Madeleine, sua mulher há mais de trinta anos, exímia cozinheira, já antevendo o assado de vitela com batatas coradas, regadas ao bom vinho “du Rhône”.
Madeleine termina de ajeitar a mesa, o avental impecavelmente engomado servindo de adorno ao vestido caseiro, trazendo no rosto a expressão de um artista a contemplar a sua mais recente obra prima, a mesa posta e uma terrina de sopa ocupando o centro.
Monsieur Patou entra pela porta da sala, dirige-se à mesa, beija afetuosamente Madeleine na testa e pergunta – “o que minha patinha fez para o almoço de hoje?” – ao que Madeleine responde – “sopa de quiabo” – “sopa de quiabo?!” – exclama Patou estupefato – “mas Joujou” (Joujou é Madeleine, na intimidade), “você sabe que eu odeio sopa de quiabo!” – “mas sopa de quiabo é tão bom!...” – e segue por aí afora a discussão sobre as qualidades nutritivas do quiabo, até que Patou se deu por vencido e sentou-se à mesa sem disfarçar um resmungo – “sopa de quiabo com vinho ‘du Rhone’, bah!”
Mas a primavera estava linda, Patou amava Joujou e ainda mais com essa linguiça cortada aos pedaços, e a batata, e o tempero de Joujou... sem contar que ele já havia lido num velho almanaque que quiabo era um poderoso afrodisíaco!...
Os dois sentados à mesa, a toalha xadrez já um pouco machucada pelo uso, a terrina fumegando, os pratos decorados e o relógio da sala batendo meio-dia, o sol penetrando pelas frestas da janela e as nuvens negras do desacordo se desvanecendo no ar.
Patou e Madeleine Joujou formavam um casal feliz, como feliz se sentia toda a humanidade concentrada na pequena Saint Jean des Canards naquele dia maravilhoso. 
Monsieur Patou dá a primeira colherada, dá a segunda colherada, limpa o canto da boca com o guardanapo branco que tem preso ao pescoço e, de repente, arregala os olhos.
“Uma mosca! Uma mosca na minha sopa!”
O pequeno díptero, já morto e com as pernas arreganhadas flutuava de costas ao lado de um pedaço de tomate e de uma rodela de quiabo, preso à sua viscosidade como se esta fosse uma teia de aranha gelatinosa.
Patou se levanta num solavanco, arranca o guardanapo do pescoço e ainda gritando – “uma mosca! uma mosca!” – entorna o prato com sopa, mosca e demais pertences por cima da mesa, borrifando o líquido quente e pegajoso sobre o avental bem cuidado de Joujou, que exclama “Mon Dieu!” e, ato contínuo, destempera a cabeça de Patou com a garrafa do puro “Rhône” safra 1982, uma das melhores dos últimos vinte anos, de acordo com os enólogos.
Está aberto o diálogo franco, franco em todos os sentidos.
Os passarinhos já estão se bicando por conta de um verme encontrado no meio do gramado, uma cumulus-nimbus tolda o brilho do sol, Jean-Pierre esbarra em Jacques e ambos trocam insultos, Charlotte ouve algumas palavras mal-intencionadas, pensa que é com ela e acerta a cabeça do sorveteiro com um portentoso golpe de guarda-chuva. Ao ver a cena, a criança morde a língua e chora, toda lambuzada de sorvete, e Geneviève planta um tapa na cara do jovem Laurent que enfim desencabulara e fizera propostas um tanto arrojadas para a sua condição de donzela. Laurent vira uma fera e agride a mocinha na maior baixaria.
Todo mundo se ofende e se desrespeita, pedras são atiradas a esmo, chega a polícia, bombas de gás, chega o reforço do exército, e por fim explode a bomba atômica.

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Tirando uma ou outra incorreção semântica, estas cenas foram extraídas do filme “Les sept péchés capitaux” – episódio “La colère” – mostrando uma ira à francesa, já bem familiarizada com as devastações que a guerra pode trazer.
Como nós aqui desde os idos da Guerra do Paraguai não somos brindados com o inimigo à porta de casa, nossa ira normalmente explode por questões de somenos importância ou pelo menos sem a mesma gravidade, e as nossas asas do rancor se estendem apenas até onde alcança a nossa rotina do dia-a-dia.
Ira em francês é mais “chic”.    



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