quinta-feira, 8 de agosto de 2019






RETALHOS E REBOTALHOS
(Excerto - II)

Quanto tempo estamos nesta caminhada? – dez minutos, dez horas, dez anos – o tempo é relativo e a única coisa que se manifesta é o tique-taque pulsante da minha artéria principal, os batimentos se sucedendo como aqueles que antecipam a explosão de uma bomba-relógio.
Ela segue lá na frente, desviando dos obstáculos como eu dos morcegos, até chegarmos a uma praça arborizada, com uma banca de revistas toda pintada de cinza, bancos de cimento vazios, alamedas tortuosas que cruzam aqui e ali em meio a plantas baixas e algumas florezinhas orvalhadas pelo início da madrugada.
Na frente da praça, um cenário digno dos piores pesadelos, um cemitério de muro baixo, totalmente gradeado com as grades pintadas naquele cinza prateado e o enorme portão de ferro todo trabalhado se abrindo lentamente num ranger de gonzos enquanto ela, a minha musa, gesticula para mim num último adeus e entra lentamente em meio aos ciprestes e às pedras tumulares.
O portão se fecha com outro rangido e ouve-se o ruído de uma corrente se enroscando nas grades, para mim a última pá de cal pra coroar a noite sinistra. Depois, o silêncio absoluto, restando apenas eu, meu cabelo eriçado e embranquecido pelo sereno, enquanto o coração tenta voltar ao compasso normal sem o risco de sair pela boca.   

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Hannah é uma garota muito meiga, um pouco tímida e tem uma alta sensibilidade artística. Gosta de pintar suaves aquarelas, de ler os clássicos franceses e de ouvir jazz.
Descobrira há pouco tempo um lugar chamado Crème de la Crème que, a despeito da vulgaridade mundana apresentava um talentoso saxofonista que tocava o que ela gostava, do jeito que ela gostava.
Hanna não tinha certeza, mas achava que ele tocava somente para ela, pois era para ela que ele olhava, e a cada pressão dos dedos naquelas chavetas douradas produzia nela um arrepio profundo, como se as suas mãos lhe estivessem proporcionando uma massagem tonificante.
Esta noite, quando ela saiu do bar, ele abandonou o palco para segui-la, embora nunca chegasse perto dela e Hannah, na sua discrição e timidez teve apenas a coragem de lhe dar um furtivo adeus.
Na próxima semana Hannah irá falar com ele, explicar porque tudo é tão difícil e porque se sente intimidada, vulnerável e pequena.
Hannah vai explicar que não é fácil ser a filha do zelador do cemitério e ter que morar naquela solidão, no meio das almas.   

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