RETALHOS E REBOTALHOS
(Excerto - II)
Quanto tempo estamos nesta caminhada? –
dez minutos, dez horas, dez anos – o tempo é relativo e a única coisa que se manifesta
é o tique-taque pulsante da minha artéria principal, os batimentos se sucedendo
como aqueles que antecipam a explosão de uma bomba-relógio.
Ela segue lá na frente, desviando dos
obstáculos como eu dos morcegos, até chegarmos a uma praça arborizada, com uma
banca de revistas toda pintada de cinza, bancos de cimento vazios, alamedas tortuosas
que cruzam aqui e ali em meio a plantas baixas e algumas florezinhas orvalhadas
pelo início da madrugada.
Na frente da praça, um cenário digno dos
piores pesadelos, um cemitério de muro baixo, totalmente gradeado com as grades
pintadas naquele cinza prateado e o enorme portão de ferro todo trabalhado se
abrindo lentamente num ranger de gonzos enquanto ela, a minha musa, gesticula
para mim num último adeus e entra lentamente em meio aos ciprestes e às pedras
tumulares.
O portão se fecha com outro rangido e ouve-se
o ruído de uma corrente se enroscando nas grades, para mim a última pá de cal
pra coroar a noite sinistra. Depois, o silêncio absoluto, restando apenas eu,
meu cabelo eriçado e embranquecido pelo sereno, enquanto o coração tenta voltar
ao compasso normal sem o risco de sair pela boca.
-0-0-0-
Hannah é uma garota muito meiga, um
pouco tímida e tem uma alta sensibilidade artística. Gosta de pintar suaves
aquarelas, de ler os clássicos franceses e de ouvir jazz.
Descobrira há pouco tempo um lugar
chamado Crème de la Crème que, a despeito da vulgaridade mundana apresentava um
talentoso saxofonista que tocava o que ela gostava, do jeito que ela gostava.
Hanna não tinha certeza, mas achava que
ele tocava somente para ela, pois era para ela que ele olhava, e a cada pressão
dos dedos naquelas chavetas douradas produzia nela um arrepio profundo, como se
as suas mãos lhe estivessem proporcionando uma massagem tonificante.
Esta noite, quando ela saiu do bar, ele
abandonou o palco para segui-la, embora nunca chegasse perto dela e Hannah, na
sua discrição e timidez teve apenas a coragem de lhe dar um furtivo adeus.
Na próxima semana Hannah irá falar com
ele, explicar porque tudo é tão difícil e porque se sente intimidada,
vulnerável e pequena.
Hannah vai explicar que não é fácil ser
a filha do zelador do cemitério e ter que morar naquela solidão, no meio das
almas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário