segunda-feira, 9 de setembro de 2019





A GULA  
(Excerto II)


A mansão está em festa.
À beira da piscina, senhores grisalhos e bem-humorados conversam ações da bolsa, viagens a negócios, cruzeiros de férias, projetos políticos, financiamentos e outras questiúnculas do gênero.
Devidamente protegidas do sol, senhoras um tanto gastas e usadas, apesar dos tratamentos de beleza, clínicas de rejuvenescimento e salões de estética expõem suas celulites ao doce compasso das confidências e das inconfidências e planejam o próximo chá de caridade onde poderão desfilar um novo guarda-roupa e colocar à mostra as joias caras que moram escondidas no cofre.
Ao sol, rapagões bronzeados, cabelos da moda e minúsculas sungas, põem em evidência todos os seus volumes, enquanto as gatésimas gatas desfilam suas protuberâncias superiores e inferiores se dourando como tenros galetos. A música de elevador se insinua suavemente pelos quatro cantos da casa através de alto-falantes estrategicamente instalados por entre arbustos e postes de iluminação e provoca a desconfiança a respeito do bom gosto musical dos proprietários.
Os doutores arriscam um olhar ousado para as filhas dos outros doutores, sob a censura constante das esposas de todos os doutores, à luz do semblante entre o intrigado e o deixa-pra-lá dos filhos e dos amigos dos doutores, das filhas dos doutores e dos próprios doutores.
Após a piscina e os aperitivos e com a chegada do senador, será servido o almoço com os mais finos acepipes e os melhores vinhos importados, representando o milagre da multiplicação da fartura: para os vinte e tantos privilegiados que participam do animado ágape há secos e molhados o suficiente para alimentar pelo menos cem famintos.
Mas os adultos enressacados e a trivial “jeunesse dorée” colocam apenas míseras porções nos pratos porque à noite teremos uma recepção oferecida ao ministro senegalês que nos visita.
Lá fora, alguns meninos miseráveis fazem algazarra e passam de porta em porta pedindo um pouco de comida.
“Hoje não tem! Vão andando e não encham o saco!” – brada o vigilante cumprindo com o seu dever. E arremata, num tom mais baixo “... ninguém aguenta tanto mendigo pedindo coisa por aí!...”   
    

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