O GATO CINZA
(Excerto II)
O som da música invade a sala e embriaga
os meus ouvidos enquanto a chuva cai vagarosamente numa sinfonia de pingos que
soa em descompasso com o compasso do cravo.
Pressinto algum perigo como se fosse um
inseto assustado, e um medo irracional me invade e me gela o sangue nas veias.
Imprudentemente, deixo a janela
escancarada e fito com os olhos perdidos os galhos da castanheira balançarem ao
sabor do vento. Um som vindo de fora se confunde com a música de Frescobaldi
como se alguma corda do cravo tivesse se partido em mil pedaços transformando a
harmonia em algo áspero e destrutivo.
(Toccata Seconda, em sol menor).
Então surge a aparição, como uma
visagem.
Sentado no beiral da janela, tendo a
chuva e a castanheira como fundo, o gato cinza sorri para mim. Sorri um sorriso
debochado e sobrenatural, caçoa e zomba de mim e de tudo o que represento.
Mais do que tudo, sorri um sorriso que me
amedronta. A Toccata Seconda será a segunda e última, me parece.
O gato cinza está estático. Seus dentes
e suas unhas estão à mostra e o seu olhar avermelhado me deixa imóvel na
poltrona, sem forças para me levantar, para tentar fugir, para me defender ou
sequer dialogar.
Os segundos passam como se fossem horas,
minha expectativa cresce e a cena fica paralisada como numa fotografia.
Ele me fita, e a sua expressão se torna
cada vez mais humana, mais aterrorizante e mais provocadora. Mais diabólica.
A música cessou e o silêncio sepulcral é
apenas quebrado pelo ruído compassado da agulha sobre o disco de vinil e pelo
ritmo alucinante provocado pela chuva da estação.
Então, o inesperado acontece.
Ele me lança um derradeiro olhar e,
tomando impulso como se fosse se lançar contra a minha garganta, gira o corpo e
levanta voo como um pássaro assustado saindo janela afora em direção ao
desconhecido, passando célere pelo poste de iluminação e sumindo nos céus como
uma coruja em debandada.
Um relâmpago cai junto com o troar de um
trovão, e depois volta a reinar o mais profundo silêncio dentro da sala.
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