terça-feira, 7 de abril de 2020





O GATO CINZA   
(Excerto II)

O som da música invade a sala e embriaga os meus ouvidos enquanto a chuva cai vagarosamente numa sinfonia de pingos que soa em descompasso com o compasso do cravo.
Pressinto algum perigo como se fosse um inseto assustado, e um medo irracional me invade e me gela o sangue nas veias.
Imprudentemente, deixo a janela escancarada e fito com os olhos perdidos os galhos da castanheira balançarem ao sabor do vento. Um som vindo de fora se confunde com a música de Frescobaldi como se alguma corda do cravo tivesse se partido em mil pedaços transformando a harmonia em algo áspero e destrutivo.
(Toccata Seconda, em sol menor).
Então surge a aparição, como uma visagem.
Sentado no beiral da janela, tendo a chuva e a castanheira como fundo, o gato cinza sorri para mim. Sorri um sorriso debochado e sobrenatural, caçoa e zomba de mim e de tudo o que represento.
Mais do que tudo, sorri um sorriso que me amedronta. A Toccata Seconda será a segunda e última, me parece.
O gato cinza está estático. Seus dentes e suas unhas estão à mostra e o seu olhar avermelhado me deixa imóvel na poltrona, sem forças para me levantar, para tentar fugir, para me defender ou sequer dialogar.
Os segundos passam como se fossem horas, minha expectativa cresce e a cena fica paralisada como numa fotografia.
Ele me fita, e a sua expressão se torna cada vez mais humana, mais aterrorizante e mais provocadora. Mais diabólica.
A música cessou e o silêncio sepulcral é apenas quebrado pelo ruído compassado da agulha sobre o disco de vinil e pelo ritmo alucinante provocado pela chuva da estação.
Então, o inesperado acontece.
Ele me lança um derradeiro olhar e, tomando impulso como se fosse se lançar contra a minha garganta, gira o corpo e levanta voo como um pássaro assustado saindo janela afora em direção ao desconhecido, passando célere pelo poste de iluminação e sumindo nos céus como uma coruja em debandada.
Um relâmpago cai junto com o troar de um trovão, e depois volta a reinar o mais profundo silêncio dentro da sala.

Nenhum comentário: