EU
E A MÚSICA
Capítulo
1 – PARADA DE SUCESSOS!
Parte 3
Eu e a minha turma ingeríamos altas doses de boa música – e
um outro tanto de gim-tônica – no recôndito do nosso garage club, batizado com o sugestivo nome de Bop Street, nome de
uma música gravada pelo grupo de rock
“Gene Vincent & His Blue Caps”. Ou então nos revezávamos nas casas de
outros amigos para conhecer as novidades que faziam o nosso gênero musical,
para o bem dos nossos ouvidos e espírito.
Mas, de volta àquela hora de almoço que iria mudar a história do mundo, as
músicas apresentadas no programa eram anunciadas na ordem inversa, começando
pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com Hélio de Alencar gritando bem ao
seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, João Gilberto, uma novidade
em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a
mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me
deixa estático em frente ao portão. Não é samba, não é choro, não é
samba-choro. O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma
divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave
acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester
Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a
voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde
tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito
universal que regula o bom gosto musical.
Nas próximas décadas ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma
unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de
interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional e absolutamente
discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, existe um divisor de águas entre aqueles que o
idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não
entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de
interagir com o público.
Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de
casa, apanhei o trolleybus e fui ao chamado
centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para
adquirir no ato o disco “Chega De Saudade”
(Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e
violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos
Jobim (como no caso de Copinha, vim saber deste detalhe muito depois), o que
colaborou com a magistralidade da gravação; no lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP com essas músicas seria lançado apenas
no ano seguinte – 1959 – incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antônio Carlos Jobim e
Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos
Lyra e Ronaldo Bôscoli), “Ho-Bá-Lá-Lá” (João Gilberto) e “Brigas, Nunca Mais” (Antônio Carlos
Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutanti,
teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas
que incluem a mim, a minha turma da Bop Street, a turma carioca do
Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os
amigos do jazz, o pessoal de Ipanema
e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as
portas do Reino do Céu.
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