quarta-feira, 25 de agosto de 2021

 


O SONHO 
           (Augusto Pellegrini)
 

O sol declinava no fim da tarde, e fazia entrar uma réstia de luz oblíqua pela janela ornada por cortinas semicerradas dentro do estúdio sóbrio, mas elegante.

A parede era revestida por uma espessa tapeçaria semelhante às usadas nos castelos medievais, cuja tonalidade variava do dourado para o castanho, contendo desenhos filigranados em azul, e a decoração era completada por um cortinado de um rubro sanguíneo.

No chão, sobre o assoalho encerado, havia uma esteira de linóleo brilhante que conduzia até a porta de entrada, com as cores em mosaico combinando com o ambiente.

O estúdio era chique, porém discreto. O espaço não era muito arejado, dentro dos padrões das salas de visita dos anos 1940, um ambiente escuro sem ser fúnebre, e se impunha pela presença de um majestoso piano negro de cauda, que tomava inteiramente conta da paisagem. Ao lado do piano, bem à mão do pianista, havia uma mesa de centro de madeira trabalhada, com algumas xícaras contendo um frio resto de café, além de uma taça com um pouco de água, um cinzeiro repleto de tocos de cigarro e alguns cigarros virgens espalhados ao lado de três ou quatro folhas de partituras.

Na parede nua, ao lado da porta, um majestoso quadro se impunha, mostrando o retrato de uma dama imponente, embora sorridente.

Dwight Spencer, jornalista de algum renome na cidade, estava sentado numa cadeira de espaldar alto diante da mesa de centro, tendo à mão um bloco de anotações, e praticava o seu ofício conversando com o pianista, cuja figura se agigantava na sala, não só pelo seu tamanho avantajado, mas principalmente pelo seu porte nobre e altivo.

O som grave e pausado da sua voz era por vezes acompanhado por acordes ou trinados aleatórios, que pareciam estar compondo mais uma das suas mil melodias.

O repórter falou:

O que é preciso para se compor uma música?” – de repente a pergunta lhe pareceu um pouco idiota, mas já havia sido proferida. O que Dwight queria saber, na verdade, era se seria necessário que o compositor se munisse de algum espírito ou de alguma emoção especial antes de começar a desenhar as notas e as figuras musicais sobre a partitura, tendo como referência apenas a sua criatividade.

A resposta óbvia seria “inspiração, uma ideia na cabeça, disposição momentânea” ou até mesmo “obrigação contratual”, mas ela veio diferente e desconcertante.

Sonhar...” – respondeu o maestro.

Sonhar?!” – e o jornalista levou alguns segundos para assimilar a resposta do maestro, assim como a maioria das pessoas levavam algum tempo para entender a sua harmonia, oblíqua como o sol da tarde.

“Eu sabia que não seria fácil entrevistar Duke Ellington!...” – pensou o repórter.

Ellington parecia totalmente envolvido no som do seu piano, e talvez nem estivesse prestando atenção nas perguntas.

De fato, ele não encarava o repórter; ao invés disso, fitava o teclado e ia além, com o olhar às vezes penetrando a caixa de madeira e se perdendo por entre os marteletes de feltro e se fixando no semblante emoldurado na parede. Obedecendo ao seu olhar, os dedos tocam as teclas, num acorde que faz os martelos vibrarem contra as cordas e criarem um som etéreo, o que provocou um estranho arrepio no jornalista.

Mas Ellington estava atento à conversa de Dwight.

Yes, sir!, sonhar me traz idéias!” – confirmou Ellington, e enquanto falava, seus dedos corriam céleres sobre o teclado, num arpejo poderoso.

Nada disto existe, tudo isto é sonho... Vê?” – e ele lança um olhar inquisitivo para Dwight Spencer – “Isto não é música, isto não é um piano, isto é... sonho!...”

Spencer sorriu, mas não fez nenhuma anotação.

Eu sonho o tempo todo, quando toco e quando componho. É a única maneira possível de se fazer música” – encerrou Ellington, enigmaticamente.

Este era Duke Ellington, mais do que simplesmente um músico, um intelectual da música. Dwight entendeu o recado, percebeu qual seria o rumo da entrevista e decidiu apostar num trabalho inusitado, preocupado não em conhecer a história, mas em desvendar a alma do maestro.

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