EU
E A MÚSICA
A
SÃO PAULO DE ADONIRAN BARBOSA
Parte
2
Por trabalhar dentro de uma linha de composição mais
voltada para a canção e para a bossa, foi com muita surpresa que recebi em 1974
um convite para ingressar na ala de compositores de uma escola de samba, no
caso a paulistana Pérola Negra, que na época era recém-egressa do Grupo B.
O convite partiu de um dos integrantes da ala, um engenheiro chamado Francisco
Siqueira, sambista bissexto que eu conheci por força do meu ofício na época, o
nada romântico trabalho de inspecionar equipamentos industriais, o que eventualmente
estava acontecendo na empresa onde ele era o gerente industrial.
A princípio relutei em aceitar, pois aquilo ia contra todas as convicções
musicais que eu havia cultivado até então – jazz, samba-canção, bossa nova –
mas dada à insistência do Chico acabei aceitando o desafio.
Fiquei na agremiação durante seis anos, onde fiz parceria com Chico Siqueira e
com outros compositores, participei das festividades regulares da escola, dos eventos
de samba de quadra, dos ensaios de rua, das escolhas dos sambas-enredos, e
logrei ser o vencedor em 1979 com o samba “Carnaval,
Intrigas e Opiniões” – cujo tema era
as discussões sobre a origem do samba – feito em parceria com meu depois
compadre Nelson “Zurumba” Gengo (a música foi gravada em LP 230023 pela CBS e
elogiada em um artigo de 15 de fevereiro de 1979 publicado no Jornal do Brasil
pelo crítico musical José Ramos Tinhorão, um luxo!).
“Até parece que o
samba
procura imitar a vida
as divergências da história
permanecem na memória.
Nascido no Cariri,
ou então em Salvador,
se veio da ginga dos bambas
ou do jongo do interior,
importante é conseguir
unir todas as correntes,
fazendo com alegria
o canto da nossa gente
Samba,
sambé, sembahó
ou sambaquixaba,
passado que todos discutem,
futuro que nunca se acaba.
Eram
castanholas e pandeiros,
depois flauta e cavaquinho.
Intrigas e opiniões
jamais dividirão
os nossos corações.
No céu um repinique de estrelas
mostrando o carnaval de amanhã,
na terra virá a Pérola Negra
sambando ao som de Aldebarã”
(“Carnaval, Intrigas
e Opiniões” – Augusto Pellegrini
e Nelson “Zurumba” Gengo)
Por ocasião dos desfiles, os compositores eram também responsáveis
pela harmonia da escola, o que nos permitia participar deles como um todo,
percorrendo o trajeto do desfile em toda a sua extensão, indo e voltando, e tentando
manter as diversas alas cantando em uníssono e com entusiasmo, evitando também o
aparecimento de espaços em branco entre os sambistas, o que a nomenclatura do
samba chama de “buraco”.
Era empolgante a gente se sentir iluminado pelos holofotes, sustentados por uma
bateria vibrante e por uma alegria contagiante que descia em cascata das
arquibancadas para a avenida, que naquele tempo ainda não era chamada de “passarela
do samba”.
Durante o ano a escola se dividia em múltiplas atividades, todas voltadas para
a execução do desfile perfeito no Carnaval seguinte. A bateria ensaiava
paradinhas e filigranas sob a batuta do seu mestre; o cantor principal, chamado
de “puxador” cantava o samba-enredo por horas a fio para afinar as cordas
vocais e fazer com que todos os elementos da escola memorizassem a música; as
costureiras, em geral familiares dos participantes, produziam as fantasias
elaboradas pelo diretor de carnaval, que acumulava as funções de figurinista;
os artistas plásticos se confinavam em galpões escondidos dos olhos do mundo e
preparavam as alegorias e os carros alegóricos.
Foi nesse ambiente ímpar que eu conheci uma figura também ímpar do poeta
popular Adoniran Barbosa.
Adoniran era o mais legítimo intérprete das coisas de São Paulo, ao lado do
conjunto Os Demônios da Garoa, do sambista Germano Mathias e dos quase
desconhecidos Talismã e Geraldo Filme (estes últimos compositores de escolas de
samba paulistanas), e se dava ao luxo de atentar contra a língua portuguesa sem
o menor pudor, uma homenagem aos seus avós que como tantos outros italianos
aportaram na cidade no final do século 19 para tentar uma vida mais digna.
Adoniran foi um batalhador em busca de um lugar ao sol, trabalhando como
comediante, locutor e cantor tão logo conseguiu vislumbrar a oportunidade de
mostrar o seu talento nas ondas do radio.
Entre outras coisas, Adoniran também era um compositor que não conhecia teoria musical.
O espírito urbano das suas composições retratava o ator que morava nele, às
vezes histrião, às vezes irônico, às vezes dramático, como de resto o era a sua
interpretação como cantor.
De certa forma éramos dois peixes fora d’água que se encontravam no mesmo
lugar, sob o mesmo céu estrelado, sem ter muita relação histórica com o que se
passava ao redor.
Havíamos aceitado o desafio, eu como compositor, ele como protagonista, e
estávamos no mesmo barco até que o mesmo chegasse ao nosso porto seguro.
Numa escola de samba, a pessoa homenageada com o tema assume a condição de
padrinho ou madrinha da associação durante o período que vai da escolha do tema
pela comissão de carnaval até o dia do desfile.
Nessa condição, ela frequenta a escola durante os ensaios, decide se vai
desfilar e de que forma irá desfilar e se torna amigo de todos, desde os
membros da diretoria até o sambista de ala mais humilde, embora poucas vezes
esta amizade se prolongue depois do carnaval.
Um dos pontos altos da celebração é a escolha do samba-enredo, quando o
personagem do tema participa de uma festa com direito a ouvir e apreciar mais
de uma dezena de sambas feitos em sua homenagem.
Adoniran não era habituado a comparecer a ensaios, pois os mesmos duravam horas
a fio, e o poeta, apesar de apreciar o sereno que lhe dava inspiração, não tinha
na alma a retumbância dos surdos e dos alto-falantes. Ele preferia o aconchego de
uma cantina ou de uma esquina à luz de um poste, onde ele podia sussurrar
poesia com sua pouca voz ao lado de uma taça de vinho ou de um violão solitário
e preguiçoso.
Aparentemente, Adoniran não chegou a se comover pelo fato de ser cantado em
prosa e verso. Ele, que já cantara tantos personagens, fictícios ou não –
Iracema, Ernesto, Nicola, Malvina, Pafúncia, Mato Grosso, Joca, Geralda – sabia
conviver perfeitamente com essa inversão de papeis.
No entanto, na noite da escolha do samba-enredo ele lá estava, de bigodinho
aparado, chapéu e gravata borboleta – só faltava o cachecol que o acompanhava
nas noites garoentas de São Paulo – e se mostrava muito animado.
Seus olhos miúdos brilhavam com a intensidade dos olhos de um gato e seu
sorriso com o canto da boca equilibrava o costumeiro cigarro sem filtro que
aceleraria a sua morte oito anos depois.
Ele percorreu várias mesas para cumprimentar as pessoas que o aplaudiam, subiu ao
palco para receber homenagens enquanto era saudado pelo presidente da escola –
o que de certa forma o constrangeu, homem simples que era – e terminou na
chamada “mesa da diretoria” onde sentavam alguns diretores e compositores, e
onde a cerveja rolava ao som do samba.
Amante de um bom uísque, Adoniran foi presenteado com uma garrafa e um balde de
gelo, com o que se regalou.
Um diretor se desculpou pela pobreza da agremiação, que na impossibilidade de
lhe oferecer algo mais requintado optou pelo brasileiríssimo Old Eight e
algumas peças de frango a passarinho feito por uma das tias da escola.
Adoniran se limitou a responder – “num tem
portança” – e em pouco mais de uma hora secou a garrafa.
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