PÁGINAS ESCOLHIDAS
O
FANTASMA DA FM (1992)
(Augusto Pellegrini)
O FANTASMA DA FM
Todas as madrugadas ele aparece no jardim, vindo do
nada, trazido pelo vento, e passa por entre as plantas cuidadosamente
espalhadas, que estremecem com a sua aproximação, na aragem fria e úmida das
duas horas.
Ele se encaminha para a sala de recepção protegida por uma imensa parede de
vidro e por um par de portas também de vidro que ele atravessa sem tocar, passa
pelo porteiro semiadormecido que fita a tela da televisão com os olhos fechados,
vaga pelo corredor deserto, sobe as
escadas geladas pela força do ar condicionado e vai espiar Adalgisa pelo vidro retangular no
alto da porta do estúdio.
O telefone da recepção toca seu ruído estridente dentro daquele silêncio, e o
porteiro enfim acorda e tem a sensação desagradável de que por ele passou
alguém e com a incômoda impressão de ter dormitado num banco duro de velório.
Do outro lado do vidro as plantas se movimentam ao vento qual vultos humanos de
braços compridos num teatro de silhuetas, enquanto o telefone para de gritar.
No estúdio as luzes estão baixas como numa catedral vazia e os sons se alternam
– Pink Floyd, Genesis, Beatles, Queen – na voz de veludo de Adalgisa.
De repente, um leve tremor e um par de olhos espreitando do lado de fora do retângulo
envidraçado da porta que parece se abrir sem qualquer ruído, enquanto John Lennon
balbucia “…you and me together, we are in our place…” e o sonho vai mais além –
as luzes se apagam, Lennon emudece e a respiração fica ofegante.
Adalgisa balança a cabeça, espanta o pesadelo, volta a se concenrar no
microfone com o painel vermelho indicando “NO AR” e a sua voz de veludo
transmitindo romance e encantamento ao som de Coleman Hawkins soprando Body and
Soul.
(A seguir, nosso próximo programa – “Jazz
na madrugada”…)
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