segunda-feira, 2 de maio de 2022

                                                       


                                                              PÁGINAS ESCOLHIDAS

Do livro À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)

CRISOLDA VAI CASAR

Crisolda vai casar.
Por encanto ou desencanto, Crisolda vai casar depois do quarenta anos, curada de uma febre de quarenta graus, subindo uma escadaria de quarenta degraus, com Nicolau, o maldito do bairro.

Bela como uma prima-dona de Rossini maquiada como artista de circo mambembe, inconvincente como desculpas de maridos ao alvorecer, Crisolda veste o branco vestal de um ridículo surrealista como se o costureiro tivesse sido Fellini.

Aquela linda garotinha de cabelos cacheados e vestido de lacinhos, a boneca do bairro, se transformara rapidamente numa doce e meiga Crisolda, sonho e desejo dos adolescentes do bairro e adjacências, e depois na bela Crisolda madura como fruta de estio, passando pelos vinte com a arrogância de quem vai permanecer solteira.

Chegara aos trinta ainda luminescente, com as bênçãos de Balzac, mas a partir daí começou a entrar em franca decadência, como flor amanhecida, e agora não passa de um retrato amassado nos cantos e amarelado pelo tempo, o calcanhar ainda fino evocando sensualidade, mas as ancas sacudindo proeminentes e gelatinosas como trouxa de lavadeira.  

Este quadro desanimador, comentavam, teria conduzido Crisolda ao sempre evitado momento – agora derradeiro alento – de dizer “sim” ainda que fosse para Nicolau, o maldito do bairro.      

(Uma história de amor para não ser contada) 




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