Do
livro À NOITE, TODOS OS GATOS (1998)
(Augusto Pellegrini)
CRISOLDA
VAI CASAR
Crisolda vai casar.
Por encanto ou desencanto, Crisolda vai casar depois do quarenta anos, curada
de uma febre de quarenta graus, subindo uma escadaria de quarenta degraus, com
Nicolau, o maldito do bairro.
Bela como uma prima-dona de Rossini maquiada como artista de circo mambembe,
inconvincente como desculpas de maridos ao alvorecer, Crisolda veste o branco
vestal de um ridículo surrealista como se o costureiro tivesse sido Fellini.
Aquela linda garotinha de cabelos cacheados e vestido de lacinhos, a boneca do
bairro, se transformara rapidamente numa doce e meiga Crisolda, sonho e desejo
dos adolescentes do bairro e adjacências, e depois na bela Crisolda madura como
fruta de estio, passando pelos vinte com a arrogância de quem vai permanecer
solteira.
Chegara aos trinta ainda luminescente, com as bênçãos de Balzac, mas a partir
daí começou a entrar em franca decadência, como flor amanhecida, e agora não
passa de um retrato amassado nos cantos e amarelado pelo tempo, o calcanhar
ainda fino evocando sensualidade, mas as ancas sacudindo proeminentes e gelatinosas
como trouxa de lavadeira.
Este quadro desanimador, comentavam, teria conduzido Crisolda ao sempre evitado
momento – agora derradeiro alento – de dizer “sim” ainda que fosse para Nicolau,
o maldito do bairro.
(Uma história de amor para não ser
contada)
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