terça-feira, 15 de abril de 2014




EU E A MÚSICA – DIAGONAL

A tranquila cidade de São Paulo oferecia durante os anos 1960 um fantástico circuito de barzinhos que fizeram parte da renovação da música brasileira após o surgimento da bossa-nova.
O mapa do bom gosto era praticamente confinado ao bairro da Consolação – Praça Roosevelt e arredores – onde a noite fervilhava de boa música com Djalma Ferreira, Dick Farney, Ed Lincoln, Sambalanço Trio, Leny Andrade, Araken Peixoto, Geraldo Cunha, Luiz Carlos Paraná, a iniciante Elis Regina e tantos outros.
Vários tipos de pessoas se misturavam na noite sem fim, às vezes curtindo um espetáculo vanguardista no Teatro de Arena ou uma sessão de cinema também vanguardista no Cine Bijou para depois encerrar a noitada no Bar Redondo, reduto de toda a fauna boêmia que se possa imaginar, até que chegasse o alvorecer a pleno sol.
A música corria leve e solta no Farney’s (que depois virou Djalma’s), no Bon Soir, no Stardust ou no Cave.
Mais adiante, na Vila Buarque, também havia o Baiúca (a primeira casa e introduzir este tipo de show), o Ela Cravo e Canela e o João Sebastião Bar.
Em contraponto com a noite da Praça Roosevelt, não muito longe dali, em outra praça, a das Bandeiras, no início da Avenida Nove de Julho, ficava o Claridge (depois Cambridge) Hotel, cujo American bar apresentava o mesmo tipo de música, mas voltado para aqueles que não tinham hábitos noctívagos, pois abria as portas já no início da noite, para um discreto “happy hour” de shows semiacústicos com a presença de astros como Zimbo Trio, Manfredo Fest Trio, Bossa Jazz Trio, Alayde Costa, Claudette Soares, Pedrinho Mattar Trio e Johnny Alf.
Eu tinha o hábito de frequentar o Claridge na medida em que meus bolsos podiam aguentar, e passava algumas horas de encantamento sorvendo algumas cubas-libres e me inebriando com aquela música especial que preenchia o espaço refinado do local.
Mesmo quando não havia algum espetáculo programado, ou nos intervalos das apresentações, o show continuava, pois a casa tocava um west-coast discreto que variava de Chet Baker a Shorty Rogers, ou alguma coisa estilo third stream que tanto podia ser o Modern Jazz Quartet como Dave Brubeck e seu quarteto, tudo para tornar o ambiente realmente acolhedor.
Contrariamente à maioria dos bares e boates, as conversas aconteciam em voz baixa e não se ouviam as irritantes gargalhadas de algum piadista desprovido da capacidade de ouvir e entender música de qualidade. O som da casa era perfeito e, nos shows, realçava os atributos dos músicos e do cantor.
Numa daqueles inícios de noite, lá fui acompanhado pelo meu amigo José Roberto “Pulga” Marques para conferirmos uma apresentação de Johnny Alf, figura carismática do movimento bossa-nova e do seu derivado, o bossa-jazz.
Compositor e cantor pré-bossa, ele não se alinhava exatamente na nova postura dogmática Lyra-Menescal-Gilberto, pois sua bossa-jazz tinha traços definitivos do antigo samba-canção de Dolores Duran e Custódio Mesquita e um piano cujo drive denunciava tada uma formação jazzística. Seu forte não era a nova batida do violão trazida por João Gilberto e compartilhada por Carlos Lyra, Roberto Menescal, Durval Ferreira e outros mais. Seu forte era um piano impregnado de jazz, produzindo um som dissonante que variava entre Lennie Tristano e George Shearing.   
Pulga tinha a seu crédito o fato de ter-me apresentado ao primeiro LP de Johnny Alf, chamado “Rapaz de Bem”, que eu frequentemente ouvia em casa com a atenção e a fascinação que lhe eram merecidas.
Evidentemente, a aquisição de outros discos do cantor foi apenas uma sequência natural, e a presença de Johnny no Claridge naquela noite foi motivo de festa.
No início da noite lá estávamos eu e o Pulga, sorvendo os goles da cuba-libre no copo longo e suado e ouvindo em silêncio, absolutamente concentrados, as músicas que iam se sucedendo – “Ilusão À Tôa” (Johnny Alf), “Fim De Semana Em Eldorado” (Johnny Alf), “Céu E Mar” (Johnny Alf), “Tudo Distante De Mim” (Johnny Alf), “O Que É Amar” (Johnny Alf) e outras preciosidades.
Nossa mesa ficava próxima ao palco.
Enquanto Johnny sorria agradecendo os aplausos depois de mais uma interpretação de tirar o chapéu, eu me enchi de coragem e, sob o olhar curioso do amigo Pulga, pedi, no impulso da empolgação – “Johnny, canta Diagonal!”.
Diagonal” (Maurício Einhorn e Durval Ferreira) é uma música que faz parte do seu segundo LP, gravado em 1965.
Em “Diagonal” Johnny não canta a letra da música, mas faz um notável “scat-singing”, a exemplo do que havia feito em “Tema Sem Palavras” (dos mesmos Mauricio Einhorn e Durval Ferreira) e “Que Vou Dizer Eu?” (Victor Freire e Klécius Caldas) no primeiro LP em 1961.
No caso de “Diagonal”, porém, ele faz um duplo “scat-singing”, pois contracanta com ele próprio.
Não dá pra cantar essa música” – disse Johnny gentilmente – “pois falta uma segunda voz para fazer o contracanto”, ao que eu, que conhecia a música de cor, canto e contracanto, atrevidamente repliquei - “eu posso fazer a segunda voz...”.
Johnny meditou por breves segundos, colocou o microfone que ele tinha junto ao piano mais para o lado, a fim de possibilitar o uso para duas pessoas, e simplesmente me convidou para subir ao palco!
Uma vez atrevido, atrevido e meio.
O baixista e o baterista (não me recordo quem eram) me olharam meio desconfiados, mas a um sinal de Johnny eles começaram a introdução.
Sem titubear, comecei a cantar com o meu ídolo, respondendo a sua primeira frase -  Tara (taturá) parutaratutára (pararaturará)...” - sem me intimidar nem ficar vermelho.
Não me lembro bem como ficou o dueto, mas ao final o público aplaudiu e o amigo Pulga congratulou-se comigo. Os músicos sorriram, e Johnny continuou o show como se tudo tivesse sido ensaiado.
Mesmo tendo privado posteriormente da amizade de Johnny Alf graças a alguns amigos que tínhamos em comum, antes de ele voltar a residir no Rio de Janeiro, o “happy hour” do Claridge se tornou inesquecível, e o breve contato que mantivemos naquela noite apenas comprovou a grandeza de alma de um artista que compensava a complexidade da sua criação musical com a simplicidade da sua condição de ser humano.

 

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