sexta-feira, 27 de janeiro de 2017






Este é o conto que deu origem ao poema "Licor de maçã". Quem tiver paciência e coragem leia até o fim.

CONTRANEXO

À noite as árvores tremulam perto do aeroporto.
Na verdade, as árvores não tremulam, o que balançam são as folhas e os galhos miúdos ao sabor da brisa que vem do mar e corre através da pista silenciosa, enquanto as árvores continuam plantadas do jeito que estão há décadas, ou de outra forma não seria possível a aquele sujeito estranho manter-se encostado, na terceira da direita para a esquerda, qual uma escora em forma de gente, depois do último carro estacionado no local permitido em cujo pára-brisa traseiro se reflete com distorção a luz da lua
No alto do céu negro podem-se notar algumas estrelas salpicadas e aquele facho de luz que varre o infinito de baixo para cima como uma odisséia no espaço, sinalizando contatos imediatos em um código ininteligível para a minha ignorância astronômica e astrolábica a respeito de navegantes e navegadores, pilotos e co-pilotos, terrestres e extraterrestres, alienígenas, azimutes e sei lá mais o que.
E eu, sentado aqui neste banco de cimento frio, duro e com rachaduras aguardando também não sei o que, se a morte com suas garras, se algum passageiro desgarrado, se um cão vadio de olhar vazio, se Rebeca de olhos fugidios ou se simplesmente o alvorecer.
Sim, porque ao alvorecer as folhas tremulam menos, o fogo antiaéreo daquele farol insistente perde sua eficácia, os fantasmas se auto-exorcizam e o estranho sujeito só ficará encostado na terceira árvore da direita para a esquerda olhando para mim, por mim ou através de mim se já estiver morto e enrijecido ou se for um mero manequim de gesso.
Faz frio, o cimento gelado amortece a polpa da bunda pelos poros do tecido fino da calça, os dedos dos pés se encolhem dentro do sapato sem meia como mãos de macaco e a aba do paletó que não combina com a calça está levantada escondendo a nuca, como a do casaco de Marlon Brando, e toca as minhas orelhas, criando desta forma um clima gris-noir de detetive ou quem sabe de mendigo, num ligeiro toque de cinema cult.  
Aquele silêncio pesado de repente se transforma num zunido persistente, renitente e intermitente, e eu vejo através do aramado da cerca as luzes da pista acendendo como árvore de natal, pequenos pontos ordenados de azul, branco e vermelho tal qual uma vitrine enfeitada.
O zumbido cresce, toma proporções maiores e mais aborrecidas e começa a incomodar o nosso silêncio e a nossa quietude, a nossa paz e a nossa reclusão, a minha e a do meu interlocutor mudo à distância, embora ele permaneça na mesma posição de estátua, com a árvore apoiada no ombro. Então eu me agito levemente no banco e o traseiro amortecido formiga como se pinicado por pequenas agulhas.
O ruído das turbinas que se aproximam sustentando o monstro alado cria um clima de superespetáculo, de megashow, e o holofote começa a coriscar mais ágil, feito laser.
Somente as luzes de azul, branco e vermelho se mantêm impassíveis, mesmo com todo esse cheiro enjoado de gasolina verde, e o espião da terceira árvore levanta os braços, comprimindo as mãos à cabeça e aos ouvidos, não me surpreenderia se de repente explodisse como um balão de gás ou colocasse uma corda ao redor do pescoço e levitasse no ar, de preferência de ponta-cabeça, como o Duce.
Mais além, o mar se torna revolto e irritadiço, e a pequena praia que se esbranquiça, mesmo com a luz omissa da lua mostra uma serenidade aparente no empurra e cede das ondas sacudidas pelo seu enorme leviatã.
Volto a pensar em Rebeca com os tímpanos em fogo, com o derrière em brasas, com a testa crispada, os olhos fechados e a face repentinamente envelhecida, e vem a vontade de desincorporar, desmaterializar, desmontar, desmanchar.
O que estou fazendo aqui, afinal? Fazendo o jogo do espia com o espantalho da terceira árvore, que sequer se enforcou e é um empecilho que não me espanta? Fazendo jogo de cena com a luz possante dos faróis, como num burlesco sem platéia e sem coadjuvantes? Ou fazendo de conta que não estou procurando Rebeca, a mulher inesquecível?
Levanto-me a ando, como Lázaro, o entorpecimento agora descendo tanto pelas pernas que mal sinto os pés, como um leproso. Como Cristo sobre as águas, vou caminhando em direção ao desconhecido, quem sabe ao conhecido, como uma formiga seguindo uma trilha, a boca seca, as mãos no bolso e a garganta clamando por um trago que me lave as tripas e a alma.


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À noite, todos os gatos são pardos, menos aquele ali, branco como a palidez de Rebeca, todo enrodilhado sobre a cadeira de palha trançada, ele que me fita e me analisa e me inquire e me acompanha com o olhar de filósofo que só os gatos sabem ter, os olhos verde-cinza enigmáticos diferentes dos olhos negros pragmáticos de Rebeca captando meu pensamento ou ao menos fingindo que me entende, o que seria no mínimo estranho, pois nem eu mesmo me entendo.
Do lado de fora do botequim de aspecto antigo, lembrando uma velha estalagem, balança uma placa de madeira esculpida à mão e presa por duas correntes a uma haste de metal, rangendo como ponte levadiça, com os dizeres “Restaurante do Dante”, um nome bem a calhar para as perspectivas da noite e para este momento histórico – “lasciate ogni speranza voi ch’entrate”.   
Enquanto trespasso o limiar da porta sem maiores rebuços, com sua soleira de mármore gasta pelos pés do tempo, o gato me segue com o olhar, o pescoço girando quinze graus de preguiça e uma orelha – vejam só, apenas uma orelha, a direita – se ergue como se sintonizasse ao longe um resquício do ruído dos passos abafados do espantalho da terceira árvore ou como se ouvisse o barulho infernal fabricado pela minha mente, um silvo profundamente agudo que flete e reflete dentro da caixa craniana repicando como bola de bilhar no rebordo da mesa, como um eco numa caverna, como um grito de náufrago.
Por via das dúvidas puxo uma cadeira também de palha trançada para junto a uma mesa de madeira sem toalha, cheia de rabiscos meio hieroglíficos feitos com caneta esferográfica – nomes, palavras, corações e caretas – e faço um sinal para o atendente, que pela idade e pela expressão meio desacoroçoada deve ser Dante, o dono deste calmo inferno, um sinal algo assim como um cacoete disfarçado, esticando o pescoço como o faria uma galinha que cisca, arregalando os olhos como um agoniado incrédulo e gesticulando levemente com a mão esquerda, enquanto a direita repõe a gola no seu devido lugar.
O atendente atende – e não seria de outra forma, por uma questão de lógica – perguntando se eu quero jantar ou simplesmente beber alguma coisa.
Não senhor! Jantar ou não quero, que não sou avestruz nem cabra pra engolir essa pasta verde e gordurosa que entrevejo na mesa ao lado. Aliás, o mais apropriado seria uma ceia leve, dado o adiantado da hora, mas de qualquer forma meu fígado não é feito de alcachofra nem meu estômago está forrado com hidróxido de alumínio, isso sem contar esses pratos e travessas de louça barata com trincaduras que me fazem lembrar a cara do meu bisavô ou um leito seco de rio, o garfo com dentes tortos qual o tridente do Satanás, e o olhar suplicante daquele velho amontoado naquela mesa ao fundo, olhando sombrio para o copo vazio, além do gato no seu recato provavelmente reclamando do uso indevido da sua travessa e do seu prato, em silêncio.
Enquanto isso, alheio às minhas observações e aos meus pensamentos, o cavalheiro de barba aparada e cara de poeta mastiga con gusto aquela coisa cor de limo e olha para o teto ripado de madeira, decorado com teias de aranha.
Então eu tomo uma decisão.
Sim senhor, acho que vou beber algo, minha garganta está seca,,,” – “Quer um copo d’água, senhor?” – “Não, pelo amor de Deus! Minha garganta está seca, mas seca de álcool, desde que não seja do hidratado” – “Uma cerveja, então?” – “Não, algo mais forte!...” (espero que ele não me dê uma martelada) “...mais forte e romântico!” – “Champanhe?” – “Hahaha!!! Champanhe num bistrô desses? Não, não, quero algo acetinado como aquele licor de maçã (aponto com o beiço para a prateleira repleta de garrafas), argentino, por favor”.
Isto posto, começo a ensaiar um assovio para dentro, para não incomodar nem o velho nem o poeta.
O atendente me olha como se eu fosse um louco, e vai ver que sou mesmo, para ter a coragem de beber esta beberagem doce e provavelmente falsificada numa hora destas (um cão ladra ao fundo, e mais ao fundo uma locomotiva grita languidamente, e o velho do copo vazio arrasta a cadeira pesadamente contra a parede enquanto o poeta palita os dentes e succiona os resíduos, com ruído).
Dinheiro não me falta, senhor Dante, olhe aqui, cavalheiro – e apresento um amarfanhado de notas tiradas do bolso do paletó (os olhos do velho do copo se arregalam), resultado do trabalho bissexto que faço como revisor bissexto daquela revista bissexta “Agro & Cultura”, que eu odeio.  Enxerto, soja, entressafra e nelore não são positivamente o meu assunto predileto, mas ainda não consegui ganhar espaço naquela publicação cultural que disseca filosofia ao invés de rãs e a mente de nós, terráqueos, ao invés da deles, batráquios, e desta forma vou vivendo de agropecuária em popa e estrume pela proa.
O gato me olha desconfiado e abre a boca num bocejo de escárnio, depois se cansa de ver tanta tolice e repousa a cabeça suavemente entre as patas dianteiras encolhidas, brancas todas elas, com a expressão de sábio que só os gatos sabem ter.
Licor de maçã...” – sai resmungando o atendente como se eu tivesse pedido óleo de rícino, limpando as mãos limpas no avental sujo, e eu retruco – “ ...argentino, hein, argentino!!” – ao que ele pensa, mas não fala – “cada tipo que eu tenho que aturar!” – e eu replico o seu pensamento gritando – “ar-gen-ti-no!” – enquanto reponho a minha pequena fortuna no bolso do paletó, para desalento do velho do copo vazio e começo a cantar – “La Boca, Callejón, Vuelta de Roja, Bodegón, Gennaro y su acordeón...” – olhando para a mesa do outro lado onde o poeta da travessa trincada acaba de deglutir a sua pasta de clorofila – “mas o que é aquilo?” – pergunto, intrigado, - “creme de espinafre com banha de porco” – responde Dante, e a minha mente associa a imagem com vômito de cachorro, causando contrações na minha vesícula.
O gato me olha com o olhar de questionamento que só os gatos sabem ter.   
O atendente vai enfim e volta com um cálice de aparência muito antiga, todo lapidado, e uma garrafa com a marca Valdevino com a inscrição “licor de manzanas” estampada em vermelho no rótulo amarelo, é mesmo um licor de maçãs, uma verdade lapidar, embora o nome lembre a vinho de origem genuína e firma reconhecida, com todas as medalhas e faixas a que teve direito, premiado na Grande Feira de Bruxelas em 1898, assim como o Óleo Salada, se é que algum dia esta Feira existiu, ou na Feira das Nações ou quem sabe na própria Feira das Maçãs.
Mando o atendente oferecer outro cálice ao velho que agradece, mas prefere conhaque de alcatrão e mel, que emborca de um só trago e faz uma careta como se tivesse bebido petróleo puro, tem tremores pelo corpo como se tivesse acabado de se desapertar e abre a boca de poucos dentes fazendo “ah!!”.  
Brindamos à distância, eu com o cálice cheio e ele com o cálice vazio, brindamos à saúde de Rebeca que eu não conheço, mas adoro, os olhos negros e luzidios já não tão fugidios são um desafio para a minha sanidade e para o meu futuro e para a minha estupidez.
Tomo outro gole profundo, e mais outro, e outro ainda, este maldito licor sabe a traçado de anis, que pode ser argentino lo mismo assim como o conhaque, talvez até Valdevino, mas embriaga do mesmo jeito e muito mais rápido. Agora eu entendo claramente a carantonha de recusa do velho do copo e do cálice vazios, ele que perderia alguns meses de vida e o restante dos dentes se provasse da minha gentileza.
Vem o quinto gole, e o sexto, Rebeca está ao meu lado fazendo uma bela contraposição visual com o gato, os olhos negros adocicados e os bigodes brancos espetados, a expressão de tola e a expressão de sábio, a garrafa se interpondo entre nós três já com muita intimidade, guardando a metade do licor e a metade do vazio, e as patas encolhidas sobre os seios alabastrinos.
Atrás do balcão um calendário de 1973 – mas em que ano estamos? – mostrando uma pin-up girl lasciva para os padrões da época, se expondo com um certo mau gosto naquele anúncio de parafusos que tanto desagradou as feministas de então, feias todas elas – as feministas – muito revolucionárias e pouco seduzidas.
O velho vazio se encosta de vez na parede e faz lembrar o espião enforcado levitando de ponta-cabeça lá no aeroporto, agora começo a entender porque certas árvores cismam em serem tortas e pendidas para o lado direito (ou esquerdo, dependendo de onde se vê) e porque as suas folhas tremulam tanto, isso a Agro & Cultura não explica, apesar de todos os especialistas e naturalistas, além dos botânicos, biólogos, zoólogos, ecólogos, agrônomos e piscicultores, agora eu sei o que aquele foco de luz antiaérea procurava, e não eram aviões inimigos ou pára-quedistas mercenários, mas a identidade secreta do espião enforcado, tentando iluminar o seu rosto de cera.
Talvez o vulto fosse mesmo Rebeca, com sua cara de desvario, com seu sorriso obsceno, com seus braços de serpente, com sua língua de mel, talvez fosse a expressão do morto, da morta, meio enforcada e meio afogada.
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Tomar licor de maçã no Restaurante do Dante é apenas parte da minha provação. Na falta de um Virgílio tento conversar à distância com o velho que percebi ser meio surdo, depois de oferecer um outro conhaque de alcatrão e mel que desta vez ele sorve aos pequenos sorvos, com cautela.
Você vem sempre nesta espelunca?” – pergunto com a boca e as mãos, e ele me responde com os olhos e os ombros – “não, porque nunca tenho um tostão furado!” – onde eu replico, entendendo o seu drama – “deixa estar, o conhaque é por minha conta” – e ele, indignado com a vida e talvez comigo – “eu nunca trabalhei, e não é agora que vou perder o meu tempo com essas coisas!” – desta vez falava com a boca – “sabe onde está a minha mulher? – parece que nossa conversa vai de mal a pior, pois somos surdos, mudos, dissimulados e péssimos mímicos – “onde está Rebeca?” – pergunto, embora já soubesse a resposta – “está morta!” – ele se referia à sua mulher, mas estremeci do mesmo jeito. Olha para mim, olha para o copo, treme, tosse o tossir dos bronquíticos, levanta-se e vai embora com seu caminhar de velho, sem olhar pra trás.
Desistindo da idéia de que o velho seja o meu Virgílio, decido que o gato será o meu Cérbero, parte felino e parte Rebeca, mas não ouso dirigir-lhe a palavra com medo de quebrar o encanto, emborco mais uns goles daquele veneno portenho, chamo Dante e peço a conta.
Isto é um roubo!”, penso quando ele me traz os números rabiscados numa papeleta numerada. Mas, afinal, o que poderia eu pretender de um inferno como este onde o tempo parou em 1973 e o diálogo surrealista entre eu e o meu Virgílio não passou de um desentendimento sócio-econômico com ares de Actor’s Studio, nós atores sentados em cadeira de palha trançada e gesticulando com a mente?
Olho para trás e vejo um relógio de parede às minhas costas, cheio de algarismos romanos, menos o IV que foi excluído pela nobre teimosia de Carlos V e substituído por um IIII – o rei se considerava um gênio porque possuía um reino onde o sol nunca se punha, e se aproveitou da covardia do relojoeiro real, que preferiu trocar os algarismos a apodrecer numa masmorra, conforme rezam os almanaques. 
Pois bem! Seis séculos depois, lanço um desafio ao poderoso rei, valendo o meu conforto contra o dele. Eu posso ouvir Mahler e Sibelius – o que ele nunca ouviu – apenas apertando um simples botão, assim como posso produzir a luz sem ter que incendiar o palácio com quatrocentas velas, que mais pareceriam círios, nesta noite de loucura.
Já são duas e meia da manhã, o cachorro insiste em latir e o gato em dormir, o licor já tem gosto de chá de ervas na aguardente, um santo remédio para a rouquidão, uma explosão no esôfago, e depois tome boldo, baldes de boldo, de preferência do Chile, onde o boldo é mais puro, assim como o uísque na Escócia, sem gosto de iodo, vinho de sorgo, vinho de sogro, Valdevino.   
Não cheguei a ver o poeta da comida verde ir embora, ele simplesmente sumiu como um fade-out, como se tragado pelo chão deste inferno, mas Dante, o atendente, ainda está ali em pé, como uma visagem, ainda limpando as mãos no avental e olhando descaradamente para os algarismos romanos do relógio de parede enquanto espera pacientemente eu me decidir entre o ir e o ficar, com uma colossal vontade de arrebentar com a caixa do relógio na minha cabeça ou de me varrer para o meio da rua, não sem antes se assegurar de que não irá acordar o gato-Rebeca que estão dormindo, embora com as antenas levantadas.
Finalmente eu me levanto, meio trôpego, compro outra garrafa de licor Valdevino para levar pra casa e apresento as notas amassadas para o atendente que as conta e alisa, vai até o balcão e retira da gaveta o troco também amassado que eu não conto nem aliso – “poode abrir a garrafa, poor favoor?” – a voz sai pastosa como voz de bêbado (e parece que eu estou mesmo bêbado).
Dante faz o último favor e depois me acompanha até a soleira de mármore para ter certeza de que eu vou mesmo embora, dou um derradeiro adeus para o gato e já não vejo o fantasma de Rebeca ao seu lado.
O gato se espreguiça como um ponto de interrogação, ao mesmo tempo em que o ruído metálico da porta de enrolar atravessa a noite como uma facada. Ele me olha com o olhar de boa noite que só os gatos sabem ter.

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Não me recordo de como engoli o restante do conteúdo da primeira garrafa, não me recordo de ter visto o atendente puxando ruidosamente a porta de enrolar, perturbando o sono do gato e o ladrar do cachorro, não me recordo de coisa alguma, mas surpreendentemente guardo cada detalhe em separado, catalogado dentro da minha caixa preta.    
Não me recordo de nada, mas me lembro de tudo, se é que me entendem.
Não me recordo de ter caminhado entre o tropeçante e o empertigado pelas ruas vazias e pelas praças sem vida, bebendo licor no gargalo como um devasso de cara inchada. Não me recordo do calçadão da igreja se afunilando em direção ao prédio onde moro, no terceiro andar em frente àquele hotel de terceira denominado Novo Mundo – seria mais verdadeiro de fosse Velho Imundo – cujo letreiro com uma falha na letra “u” do Mundo teima em piscar durante a noite na minha cara – nem me recordo do andrajoso deitado no segundo degrau da escadaria da igreja com a cabeça recostada no dorso do cachorro de estimação, porque todo cão vadio também tem o seu mendigo de estimação a tiracolo, a quem permite dormitar na espinhela.
Só me recordo da cama desarrumada de véspera e do psichê repleto de badulaques de louça, gnomos, corujas e diversos vidros de perfume Coty e falsificados – o que sobrou da última namorada que ocupava este lugar no espaço –, a gaveta entreaberta deixando transparecer uma tesoura de cortar unhas, uma caixa de band-aid transparente, um lenço com anagrama, um chaveiro sem chaves e uma foto três por quatro, revelando assim, de repente, para mim mesmo, toda a minha intimidade.
Numa mão o cálice vazio lambuzado de licor que veio de lambujem, como um souvenir, amanhã Dante vai dar por sua falta quando fizer seu inventário e vai me maldizer. Na outra mão a outra garrafa de licor já bebericada no gargalo durante o trajeto solitário desde Dante até o apartamento, tendo por companhia o frio da noite e o fantasma de Rebeca,
Olho no espelho e vejo a sua imagem refletida, nua e de bruços, bela como meu joelho esquerdo que se reflete impudicamente com ares de nádegas.
Ah, Rebeca, então vieste!
Desta vez tenho mesmo sede e procuro me livrar das mãos macias e carinhosas, frias e lisas como o pé do cálice multifacetado que deposito sobre o psichê para fazer um par no espelho.
Caminho até a geladeira, apanho o jarro de água e nele bebo sofregamente como um odre vazio. Pela janela aberta vejo o céu recortado pela silhueta da copa das árvores, cujos ramos balançam projetando um desenho animado na parte de cima do vidro fosco, enquanto o Novo Mundo pisca abusadamente.
Bebo o resto do jarro como um mata-borrão e volto para o quarto, jogo-me sobre a cama em desalinho e me recosto no travesseiro como se estivesse anestesiado, sentindo na nuca o hálito de Rebeca que se confunde com o vento da madrugada que entra pela fresta da janela.
No chão, ao lado da cama, dorme um exemplar de Agro & Cultura, onde um artigo por mim revisado fala prosaicamente sobre a influência da música de Chabrier sobre a postura das galinhas de granja. Ao lado da revista, o jornal de antes de ontem publica, no canto direito baixo da primeira página, com o devido estardalhaço que o assunto exigia, um afogamento misterioso ocorrido na praia ao lado do aeroporto.
Olhos semicerrados, vem-me à cabeça Lucho Gatica cantando “solo el mar de aquella noche, de tu destino fatal conoscerá el final” e a face branca e misteriosa de Rebeca.
Na foto que ilustra a reportagem aparece um rosto pálido, agora provavelmente azulado e com a pele em rugas. Na legenda da foto apenas um nome – Rebeca – a mulher que eu espero e que nunca conheci.
Fecho então os olhos de uma vez por todas para tentar finalmente dormir e não ver mais o seu sorriso no espelho, aplicado sobre o meu semblante lívido e emaciado, como uma máscara.
O cálice multifacetado e a garrafa sorvida pela metade também dormem, em cima do móvel.
No aeroporto, as árvores continuam tremulando, mas a sombra do enforcado desapareceu. O mar, que ricocheteia nas pedras da praia, próximo à cabeceira da pista, se fecha em seus segredos.

    


  

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