sexta-feira, 14 de abril de 2017




DESVENTURAS DE UM FIM DE TARDE
(Segunda e ultima parte)

O zênite do dia havia ficado para trás já havia cinco horas e o sol estava finalizando o seu cruzeiro diário quando Parmênio e Zé Maria decidiram que já era hora de voltar para as suas casas, onde os esperava a peroração habitual.
Afinal, eles já haviam discutido tudo o que o conhecimento e a embriaguez lhes permitiram – fatos atuais sobre política e futebol, fatos de sempre sobre problemas familiares e fatos muito antigos e difusos, como conquistas amorosas nos áureos tempos em que a testosterona estava em alta – e haviam inclusive resolvido boa parte dos problemas do mundo.
O mar recomeçava a subir novamente em direção às pernas do bar, e o céu azul já adquirira uma cor de chumbo, exibindo lá no alto a mentirosa estrela D’Alva.
O garçom foi chamado para trazer a conta, e mais uma vez, da mesma forma como acontecera na semana passada no Bar do Agenor, a contagem das garrafas foi tumultuada, o que prenunciava uma nova mudança de local num futuro próximo.
“São vinte e três cervejas, duas porções de camarão e um queijo assado” – diz o garçom.
“Isto tá erraado!” – reclama Parmênio.
“Como pode, tudo isso, vinte e três cervejas, como pode?” – reforça Zé Maria, aparentemente um pouco mais sóbrio.
“Está errado, não” – replica o garçom. “É só contar: olhe aqui: cinco... dez... quinze... vinte, mais três, vinte e três”.
Parmênio contando, com alguma dificuldade: “Deixe ver... cinco, seis, sete... oito... oito... dez... sei lá... quinze!” – exclamou vitorioso como um aluno que passou na prova oral de matemática.
“Mais oito embaixo da mesa!” – retruca o garçom, apontando com o dedo.
“Será que a gente bebeu tudo isso?!” – questiona Zé Maria, entre o intrigado e o irritado.
“Bem, os senhores passaram quase o dia todo bebendo...” – justifica o garçom.
“Então traaz a penúltima, pra arredondar... hem... pra vinte e quatro, hehehe um bom número, hehehe!” – judicia Parmênio, orgulhoso por ainda ostentar o seu talento irônico e matemático.
“Vinte e quatro é um bom número só se for na sua terra, companheiro!” – contestou Zé Maria, dando três pancadinhas na mesa com o nó do dedo médio.
“E essa vem por conta da caasa!” – arremata o doutor Parmênio, ignorando a observação do amigo.
O garçom parte em busca da conta e da vigésima-quarta cerveja, fala alguma coisa em voz baixa com Ernesto, que está por trás do balcão. Ernesto assente com um gesto de cabeça, esperançoso que a dupla tome a última garrafa e vá embora sem provocar confusão, e lá segue a “penúltima” em direção à mesa, porque bêbado que se preza nunca toma a última – dá azar!
Terminada a operação penúltimo gole, a conta foi paga num ritual que demorou outros dez minutos – “deixa que hoje eu paago!” – “não, hoje é a minha vez!!” – “então eu boto cem reais!” – “não, cem é muito!!!” – “então deixa o camarão por minha conta!” – “não, é melhor rachar!” – e o garçom a tudo assistindo com uma expressão de Madona no rosto cansado.
Os dois amigos pagaram meio-a-meio, embolsaram o troco, também meio-a-meio e saíram trançando as pernas pela superfície irregular da areia em direção aos respectivos veículos.
Ao atingirem a avenida, Parmênio trombou de leve com um poste contendo uma placa de sinalização, que se interpunha imprudentemente no seu caminho.
“Que desgraaça é essa?” – berrou o médico.
A placa advertia os banhistas sobre o perigo da maré alta – pois quando ela começava a baixar podia carregar mar adentro algum aventureiro imprudente que estivesse naquela área, uma zona de convergência de correntes que abria uma espécie de vala sugadora por onde a água retornava com muita força para o centro do oceano.
Irritado com o trompaço no poste da placa, o médico aposentado passou a lhe dirigir impropérios e parece que ficou ainda mais irritado com a sua mudez, pra não dizer desfaçatez.
Zé Maria, em solidariedade ao companheiro, cismou que a placa estava no lugar errado, pois, raciocinava ele, ali não havia banhistas em perigo. A placa devia ter sido colocada na areia, não na calçada. Ato contínuo, deu um belo safanão com a mão na chapa de metal que, provavelmente indignada com a sua atitude, provocou-lhe um corte no dedo.
Parmênio e Zé Maria se zangaram ainda mais e começaram então a agredir o poste a pontapés como se estivessem enfrentando um adversário numa briga de rua.
A cada chute uma dor, e a cada dor a raiva aumentando.
À distância, o garçom do Ernesto e o próprio Ernesto a tudo assistiam impassíveis, e viram quando a viatura da polícia chegou e dois meganhas truculentos pegaram os dois amigos com a facilidade de quem carrega uma trouxa de roupa e os jogaram no banco de trás.
Sem mais delongas, o carro partiu em disparada, os pneus gemendo em uníssono com os gemidos dos dois senhores embriagados, que finalmente se deram conta da encrenca em que se haviam metido e começaram a sentir os hematomas e os cortes causados por tão rocambolesco episódio.
Doíam-lhes as mãos, os pés e a consciência. 



Nenhum comentário: