A
CORDA
(Parte
Dois - Final)
Agora eu compreendo. Mas você não
precisa ter medo, pois estava na praia, naquela lua grande, no coco verde, na
areia molhada, se divertindo no calor da noite, enquanto alguém cortava a corda.
“A perícia foi quem descobriu que a
corda estava cortada. Também, estava de um jeito que não precisava ser perito
pra ver. Não sei, não sei, estou apavorado. Acordo todos os dias e vejo a corda
balançando, acenando para mim, me convidando para um passeio pelos ares. É um
entra e sai de policiais o dia inteiro. Vou acabar ficando louco. O Jeremias jura
que não foi ele, tem certeza que não foi ele, pois ele não abre a janela à
noite, porque tem frio. (Mas era quase manhã, e o calor está medonho...).”
“Tengo
frio, y en este piso hace aire demás. No vi cuerda ninguna. No uso navaja. Y, además de eso, estava
borracho, era madrugada, era sábado”. “¿Que
me importan las cuerdas?”
”O zelador me olha com olhos de
inquisição. Eu já nem tenho certeza do que se passou. O Jeremias eu sei que não
foi – ‘...la Libertad no consiste en hacer lo que se quiere, sinó en hacer lo que se debe, decia Campoamor’
– Jeremias vive usando frases feitas e convenceu até as paredes de que é
inocente.”
“O outro rapaz, o da chave, diz que
nunca pediu para ter chave alguma, que foi oferta da casa, e que não iria
complicar a vida de ninguém – muito menos a dele – além de outras
justificativas cheias de lógica. Resta a mulher, talvez ela tivesse se
levantado sorrateiramente e cortado a corda enquanto ele dormia placidamente;
mas por qual razão haveria ela de cortar a corda, assim sem mais nem menos?”
Estou impressionado com a narrativa do
Zacarias. Ele sai – “adeus, professor!” – (será que vai se suicidar?) com uma
gravura debaixo do braço, os ombros balançando de um lado para o outro, o
cavanhaque suado e a porta batendo à sua partida.
Volto então aos meus filmes, e a corda
agora balança na minha mente. Não tenho nada a ver com o acidente, com o
incidente, mas Jeremias tem os seus bons motivos, não pode se complicar ou é
deportado, encaixotado e carimbado como um amontoado de arenques – este lado
para cima. O outro da chave pode jogá-la num abismo ou num rio, há tantos rios
por aí cheios de lodo, quem é que iria procurar uma chave nos intestinos de um
rio canalizado? Se bem que o sumiço da chave não prova nada, existe a também a
mulher, que bem poderia ter sumido com uma daquelas estatuetas raras que ficam
naquelas estantes povoadas de livros – metafísica, dialética, dietética – e vai
ver que sumiu mesmo.
É mais fácil achar uma chave no fundo
lodoso de um rio do que notar a falta de um elefante naquele apartamento,
principalmente se for de marfim. O zelador não iria escalar a lateral do prédio
e ficar com as unhas esfoladas, nem subir pela corda e ficar com a palma das
mãos pior que as de Cristo depois que lhe pregaram os pregos, para cortar a
corda na altura do décimo primeiro andar e correr o risco de cair com ela –
subiria no máximo subiria até o quinto – e o pintor, se quisesse se suicidar,
tomaria um balde e meio de verniz e teria uma disenteria de envenenar o mundo
antes de dar a sua última contorção.
Agora abandono os filmes de vez e acendo
a luz fluorescente que fica no teto sobre a minha cabeça. Arrasto o banco para
trás e cerro os olhos. Já faz muito tempo, muitas horas, que estou trancado
aqui neste estúdio, sem comer e sem dormir. Isto não é uma cela, nem internato,
o que estou fazendo aqui que não vou embora?
Já nem sei o que tenho feito, ao certo,
os dias e o calendário já perderam o significado e o sentido.
Ponho a mão no bolso – o que é isto!?
É uma chave.
Vejamos – minha não é, pois a minha é
verde. A do estúdio também não, que se fecha com cadeado. Também não é chave de
carro, e eu não tenho carro.
Lembro-me com clareza que esta chave me
foi dada pelo Zacarias, faz mais de um mês. Eu havia deixado um álbum de
músicas clássicas sobre a sua cama, e temi que se transformasse em pedestal
para uma pilha de livros, então ele me deu a chave para eu ir buscá-lo.
Mas... então eu também possuo a chave do
apartamento! E ela queima a minha mão como um talismã do inferno.
A corda.
Zacarias não foi, estava na praia.
Jeremias não foi – que lhe importam as cordas? O amigo não foi, vai jogar fora
a chave, e assim perder a oportunidade de novas aventuras. A mulher prefere
roubar elefantes, e a modelo cuida mais de fotografar seminua. O zelador não
tem mais idade para ser alpinista, e o pintor morreu como um tomate.
Só restamos nós, eu e a chave.
Já nem tenho certeza de que fechei a
torneira ontem, ao sair de casa. Já nem sei se foi ontem. Fecho outra vez os
olhos e nem sei a cor da minha camisa, e se ainda sei que estou de camisa é
porque me apalpo e a sinto. E a namorada – estará pacientemente esperando por
mim em alguma parte do mundo?
Como posso ter certeza de que não fui eu
quem cortou a corda, deslizando como um réptil em direção àquela janela?
Estou começando a sentir enjôo, gravidez
é claro que não é, nem maresia. É medo.
Mestre Zacarias me transmitiu todo o seu
pavor e toda a sua lógica ilógica.
O que é que eu andei fazendo por aí, se
ainda estou com a tesoura entre os dedos? Cortando filmes ou cortando cordas?
Escapando da polícia, trancado aqui neste quarto?
Terei sido eu?
-0-0-0-
Sigmund falou sobre isso, e não foi pra
mim. Talvez para estes loucos, que me rodeiam.
Será que previu algum dos meus dias?
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