Este conto já foi publicado no Facebook e neste blog em 2011. Vou publicá-lo novamente porque muita gente não teve a oportunidade de ler. O conto foi originalmente publicado no livro "Coisas - Autobiografia Crítica dos anos 1960" em 1988, meu primeiro livro de contos.
A CORDA
Este conto já
foi publicado aqui e no blog augustopellegrini.blogspot.com.br em 2011. Vou
publicá-lo novamente porque tem muita gente que não teve a oportunidade de ler.
O conto foi originalmente publicado no livro “Coisas – Autobiografia Crítica
dos Anos 60” em 1988, meu primeiro livro de contos.
(Parte1)
Sigmund falou, e não foi para mim.
Escreveu livros, teceu comentários,
expôs teses, realizou conferências.
Pois bem. Não estive presente a nenhuma,
não discuti as suas teses; não li nenhum livro seu. Não comentei seus
comentários.
Sigmund falou, e não foi para mim. Nem
sequer para o Zacarias.
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A corda.
A corda balança como se na extremidade
balançasse um cadáver. Um fio de prumo no prumo, dependurado, preso lá no alto
do prédio, passando em frente da janela que é só vidro, no décimo primeiro
andar, altura suficiente para um homem sentir as sensações de Ícaro,
projetar-se nos ares, voar sem asas. Eis a corda.
A corda balança ao sabor do vento e bate
na parede corrugada de concreto ao lado do fio de telefone e do para-raios,
prendidos com grampos.
A corda está arrebentada, criminosamente
arrebentada na altura do décimo primeiro andar, mas puxada para baixo pelo peso
do morto enquanto vivo, agora pende frouxa até o nono.
E o andaime lá no chão, aos pedaços.
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Uma das minhas ocupações prediletas é
fazer cinema; registrar fatos na máquina e depois colar os pedaços de
celulóide, para ver os efeitos.
O dia e a noite passam, os olhos ardem e
as costas reclamam, a gente trabalha meio em pé e meio sentado, só pelo prazer
de ver a coisa chegar a um fim, montando filmes sem cessar e sem cansar o
espírito, é só não se concentrar no mundo profano que nos cerca – os bares
repletos e a alegria nas ruas – senão saio correndo do laboratório, paletó na
mãos, cheirando a tetracloreto e enjoando o fígado do ascensorista, e vem a
desconfiança de não ter dado a atenção devida à namorada que espera.
Arte é arte.
Estava assim absorto nas minhas artes
quando surgiu Zacarias, de tez escura, magro e alto, de cavanhaque e sotaque, a
preocupação juncando a testa e o pavor ondulando os músculos da face. Tivesse
eu uma filmadora às mãos e descarregaria toda a sua corda sobre o seu
semblante, para alguma coisa iria servir algum dia, com certeza.
“Olá, professor”, foi ele dizendo para
introduzir a conversa. Eu introduzia o negativo no editor. Ele não prestava
atenção.
“Olá, Mestre Zacarias!” – respondi eu.
Este tratamento nos era familiar.
Sua silhueta com cavanhaque se desenhava
numa tela, à minha direita. Suas mãos gesticulavam, nervosas.
“Estou num mato sem cachorro. A polícia
anda atrás de mim.”
Estava suando.
O que queria ele que eu fizesse, que o
escondesse? Que declarasse em praça pública conhecê-lo e dar fé jurada que ele era
inocente? Facilitar sua fuga para o exterior?
Que ele era inocente eu não tinha
dúvida, apesar de não saber qual era o crime, apesar de não saber se havia
crime. Afinal, a polícia poderia estar atrás dele em busca de um testemunho, ou
para encaixá-lo num batalhão de investigadores, ou simplesmente para
condecorá-lo. Sim, porque Zacarias merece uma condecoração, mil condecorações.
A Cruz de Santo Inácio, a da Ordem das Azáleas ou das Ajácias, ou a do Grande
Cã.
“Eu fui pra praia sexta-feira à noite” –
começa ele a contar. “A noite estava clara e quente, e eu suarento. Peguei
minha roupa de banho e de baixo, apanhei um ônibus e fui pra praia. Não tenho
testemunhas, mas estive lá. A praia estava clara e quente, e eu suarento. Era
noite, mas mesmo assim tomei banho de mar – você já fez isso? É uma beleza, as
ondas estavam altas, a praia deserta e a água vinha molhar até quase o fim da
areia, a lua parecia maior, ou era o contraste com o fundo negro do céu. Água
de coco gelada, e o cheiro do mar.”
“Tudo maravilhoso. Até esqueci do meu
apartamento, dos meus livros. Do lado de fora do meu apartamento tem um monte
de andaimes, os pintores estão pintando, e tem uma corda que passa bem em
frente a minha janela. Uma corda grossa, cheia de nós, para segurar a madeira e
o pintor sentado nela.”
“Pois bem, comigo mora aquele paraguaio,
ou boliviano, eu nem sei direito, aquele que pinta quadros de fetos carecas, o
Jeremias, incapaz de fazer mal a uma mosca. Ele também não estava em casa na
sexta-feira à noite, foi se encontrar com uma mulher, foram para uma boate, e
ele voltou só de manhã cedo, cansado demais para ficar acordado, e dormiu.”
“O outro rapaz que tem a chave do
apartamento disse que chegou lá por volta das onze da noite e saiu antes de o
Jeremias chegar, acompanhado, é claro, e não sabe de nada. Disse que não iria
se preocupar com coisa alguma, dada a categoria da mulher que estava com ele.
Só vendo pra crer.”
Até aqui eu não tinha entendido coisa
alguma sobre a perseguição da polícia.
Ninguém pode ser perseguido pela lei só
por morar em um apartamento que tem livros do chão até o teto, livros no
guarda-roupa e no banheiro, livros em cima da cama, quadros com figuras
folclóricas, cartazes de cinema e de teatro, bonecos de barro, retratos de
mulheres nuas de frente e de costas espalhados por toda a parede e rolos de
filmes empilhados, mesmo morando com um boliviano, ou paraguaio, mesmo tendo amigos
que compartilham a chave, e muito menos ou principalmente por ter uma corda
dançando em frente à janela.
“Estou ficando maluco. Cada vez que
acordo, olho a corda e escuto a polícia batendo na minha porta e me levando aos
berros pelo corredor cheio de eco e me atirando num elevador e numa cela, e
ditando a minha sentença.”
“Cortaram a corda, professor, cortaram a
corda com canivete ou tesoura, bem na cara da minha janela!”
Agora eu compreendia. Cortaram a corda.
E daí?
Põe outra corda no lugar, paga o
prejuízo para os pintores e uma cerveja para o zelador, faz uma festinha de
comemoração e convida o Jeremias e o amigo da chave com duas ou três mulheres
extras, e deixa o uísque com água de coco rolar sobre os livros de direito e
sobre as barrigas lisas.
“Naquela tarde eu estava fotografando
uma modelo lá no apartamento. Aquelas poses para publicar em jornal vagabundo,
a perna levantada, a saia arregaçada e a blusa desabotoada, você sabe.”
Eu sei.
“De repente, a corda se distendeu mais
do que devia e depois afrouxou. Ao mesmo tempo ouvi um grito, parecia o som de
uma sirene, que foi sumindo e terminou com o barulho de telhas quebradas. Não
tive coragem de olhar. A câmera tremia, o tripé tremia, o prédio tremia. A
modelo abotoou a blusa, ajeitou a saia, se debruçou na janela e viu o corpo
torcido no telhado cinza, lá em baixo, esborrachado como um tomate.”
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