terça-feira, 7 de novembro de 2017





Este conto já foi publicado no Facebook e neste blog em 2011. Vou publicá-lo novamente porque muita gente não teve a oportunidade de ler. O conto foi originalmente publicado no livro "Coisas - Autobiografia Crítica dos anos 1960" em 1988, meu primeiro livro de contos.  


A CORDA

Este conto já foi publicado aqui e no blog augustopellegrini.blogspot.com.br em 2011. Vou publicá-lo novamente porque tem muita gente que não teve a oportunidade de ler. O conto foi originalmente publicado no livro “Coisas – Autobiografia Crítica dos Anos 60” em 1988, meu primeiro livro de contos.

(Parte1)

Sigmund falou, e não foi para mim.
Escreveu livros, teceu comentários, expôs teses, realizou conferências.
Pois bem. Não estive presente a nenhuma, não discuti as suas teses; não li nenhum livro seu. Não comentei seus comentários.
Sigmund falou, e não foi para mim. Nem sequer para o Zacarias.

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A corda.
A corda balança como se na extremidade balançasse um cadáver. Um fio de prumo no prumo, dependurado, preso lá no alto do prédio, passando em frente da janela que é só vidro, no décimo primeiro andar, altura suficiente para um homem sentir as sensações de Ícaro, projetar-se nos ares, voar sem asas. Eis a corda.
A corda balança ao sabor do vento e bate na parede corrugada de concreto ao lado do fio de telefone e do para-raios, prendidos com grampos.
A corda está arrebentada, criminosamente arrebentada na altura do décimo primeiro andar, mas puxada para baixo pelo peso do morto enquanto vivo, agora pende frouxa até o nono.
E o andaime lá no chão, aos pedaços.

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Uma das minhas ocupações prediletas é fazer cinema; registrar fatos na máquina e depois colar os pedaços de celulóide, para ver os efeitos.
O dia e a noite passam, os olhos ardem e as costas reclamam, a gente trabalha meio em pé e meio sentado, só pelo prazer de ver a coisa chegar a um fim, montando filmes sem cessar e sem cansar o espírito, é só não se concentrar no mundo profano que nos cerca – os bares repletos e a alegria nas ruas – senão saio correndo do laboratório, paletó na mãos, cheirando a tetracloreto e enjoando o fígado do ascensorista, e vem a desconfiança de não ter dado a atenção devida à namorada que espera.
Arte é arte.
Estava assim absorto nas minhas artes quando surgiu Zacarias, de tez escura, magro e alto, de cavanhaque e sotaque, a preocupação juncando a testa e o pavor ondulando os músculos da face. Tivesse eu uma filmadora às mãos e descarregaria toda a sua corda sobre o seu semblante, para alguma coisa iria servir algum dia, com certeza.
“Olá, professor”, foi ele dizendo para introduzir a conversa. Eu introduzia o negativo no editor. Ele não prestava atenção.
“Olá, Mestre Zacarias!” – respondi eu. Este tratamento nos era familiar.
Sua silhueta com cavanhaque se desenhava numa tela, à minha direita. Suas mãos gesticulavam, nervosas.
“Estou num mato sem cachorro. A polícia anda atrás de mim.”
Estava suando.
O que queria ele que eu fizesse, que o escondesse? Que declarasse em praça pública conhecê-lo e dar fé jurada que ele era inocente? Facilitar sua fuga para o exterior?
Que ele era inocente eu não tinha dúvida, apesar de não saber qual era o crime, apesar de não saber se havia crime. Afinal, a polícia poderia estar atrás dele em busca de um testemunho, ou para encaixá-lo num batalhão de investigadores, ou simplesmente para condecorá-lo. Sim, porque Zacarias merece uma condecoração, mil condecorações. A Cruz de Santo Inácio, a da Ordem das Azáleas ou das Ajácias, ou a do Grande Cã.
“Eu fui pra praia sexta-feira à noite” – começa ele a contar. “A noite estava clara e quente, e eu suarento. Peguei minha roupa de banho e de baixo, apanhei um ônibus e fui pra praia. Não tenho testemunhas, mas estive lá. A praia estava clara e quente, e eu suarento. Era noite, mas mesmo assim tomei banho de mar – você já fez isso? É uma beleza, as ondas estavam altas, a praia deserta e a água vinha molhar até quase o fim da areia, a lua parecia maior, ou era o contraste com o fundo negro do céu. Água de coco gelada, e o cheiro do mar.”
“Tudo maravilhoso. Até esqueci do meu apartamento, dos meus livros. Do lado de fora do meu apartamento tem um monte de andaimes, os pintores estão pintando, e tem uma corda que passa bem em frente a minha janela. Uma corda grossa, cheia de nós, para segurar a madeira e o pintor sentado nela.”
“Pois bem, comigo mora aquele paraguaio, ou boliviano, eu nem sei direito, aquele que pinta quadros de fetos carecas, o Jeremias, incapaz de fazer mal a uma mosca. Ele também não estava em casa na sexta-feira à noite, foi se encontrar com uma mulher, foram para uma boate, e ele voltou só de manhã cedo, cansado demais para ficar acordado, e dormiu.”
“O outro rapaz que tem a chave do apartamento disse que chegou lá por volta das onze da noite e saiu antes de o Jeremias chegar, acompanhado, é claro, e não sabe de nada. Disse que não iria se preocupar com coisa alguma, dada a categoria da mulher que estava com ele. Só vendo pra crer.”
Até aqui eu não tinha entendido coisa alguma sobre a perseguição da polícia.
Ninguém pode ser perseguido pela lei só por morar em um apartamento que tem livros do chão até o teto, livros no guarda-roupa e no banheiro, livros em cima da cama, quadros com figuras folclóricas, cartazes de cinema e de teatro, bonecos de barro, retratos de mulheres nuas de frente e de costas espalhados por toda a parede e rolos de filmes empilhados, mesmo morando com um boliviano, ou paraguaio, mesmo tendo amigos que compartilham a chave, e muito menos ou principalmente por ter uma corda dançando em frente à janela. 
“Estou ficando maluco. Cada vez que acordo, olho a corda e escuto a polícia batendo na minha porta e me levando aos berros pelo corredor cheio de eco e me atirando num elevador e numa cela, e ditando a minha sentença.”
“Cortaram a corda, professor, cortaram a corda com canivete ou tesoura, bem na cara da minha janela!”
Agora eu compreendia. Cortaram a corda. E daí?
Põe outra corda no lugar, paga o prejuízo para os pintores e uma cerveja para o zelador, faz uma festinha de comemoração e convida o Jeremias e o amigo da chave com duas ou três mulheres extras, e deixa o uísque com água de coco rolar sobre os livros de direito e sobre as barrigas lisas.
“Naquela tarde eu estava fotografando uma modelo lá no apartamento. Aquelas poses para publicar em jornal vagabundo, a perna levantada, a saia arregaçada e a blusa desabotoada, você sabe.”
Eu sei.
“De repente, a corda se distendeu mais do que devia e depois afrouxou. Ao mesmo tempo ouvi um grito, parecia o som de uma sirene, que foi sumindo e terminou com o barulho de telhas quebradas. Não tive coragem de olhar. A câmera tremia, o tripé tremia, o prédio tremia. A modelo abotoou a blusa, ajeitou a saia, se debruçou na janela e viu o corpo torcido no telhado cinza, lá em baixo, esborrachado como um tomate.”


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