Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso
Literário Cidade de São Luís em 1995,
SOLILÓQUIO
(Parte Um)
O que mais me aborrece em morrer é a
primeira noite depois do enterro, é ter que dormir cercado de mortos que não
conheço, sem uma companhia que me cutuque as costas pedindo para eu parar de
roncar.
Na verdade, também me incomoda o fato de
eu não mais roncar, coisa que se acontecesse iria colocar este campo santo em
polvorosa e provocar, após o primeiro espanto, reportagens internacionais e
pesquisas metacientíficas tão intensas que haveriam de se propagar desde o
Titicaca até Catmandu.
Agora, apesar da vizinhança silenciosa e
insípida, o que eu vou gostar de fato é da esperada escuridão e da ansiada
tranquilidade dentro do meu silêncio, nada de ouvir portas batendo nem grilos
cricrilando, nada de chuva tamborilando sobre a terra semi-revolta nem o
prolongado pio da coruja, nada poderá incomodar o meu sono profundo aqui nesta
caixa almofadada de primeira categoria qual leito acetinado de um grande hotel
cinco estrelas, fruto da contribuição dos amigos, dada a exiguidade de fundos
dos meus bolsos sem fundo por ocasião do passamento, que no máximo dariam para
eu me acomodar em um caixote de bacalhau, fosse a escolha feita a moto próprio.
Me aborrece também ter que ficar calado
à vista de tanta insanidade, agora parece que eu vejo melhor os falsos sorrisos
e as intenções dúbias, se eu ficasse do lado de fora, entre eles, talvez também
estivesse falando mal de mim com um sorriso de escárnio estampado na face
hipócrita. Mas como todo bônus tem seu ônus, a eternidade também espera
pacientemente por todos vocês para o acerto final de contas, embora o Dia do
Juízo sejam todos os dias, é só se esvair o tônus vital e vocês também acabam
num buraco, assim como eu.
Pensando bem ser enterrado assim tem
mais graça do que ser simplesmente cremado como um pão que o padeiro esqueceu
dentro do forno e depois ter as cinzas atiradas ao mar como restos de um
churrasco de verão ou no Ganges, como um asceta.
Enterrado assim se tem mais dignidade e
a gente pode usar finalmente o terno grosso de lã apesar do calor, tendo ainda
de quebra a plateia que nos cerca qual uma alcateia faminta para ter a certeza
de que realmente partimos desta para melhor, ou para pior, e que nunca mais
voltará a nos ver (embora esteja escrito que nos veremos todos de novo muito
antes do que pensam os ímpios e os céticos senhores).
E este público assim desordenadamente
reunido entre sussurros ajuda a criar um cenário de pompa e glória, pois afinal
este é ou não é um grande dia, um dia simplesmente inesquecível?
Na verdade, se nada me incomoda do lado
de dentro, imóvel como um objeto e apertado como embutido de salsicha,
descansando no conforto do revestimento da almofada roxa de veludo e cetim e a
tampa de madeira de lei roçando a ponta do meu nariz, é porque estou também
aqui do lado de fora, encantado e divertido com tantas lágrimas, tantos
sorrisos, tanto desespero, tanto enfado, tanto dever cumprido e tantas
maldições lançadas.
Os advogados agora me chamam de “de
cujus”, os amigos distantes de “o falecido”, os credores de “que desgraça!”, o
coveiro de “pobre coitado” e os herdeiros de “graças a Deus”, mesmo não havendo
um prego torto para herdar ou talvez exatamente por isso.
A viúva, a quem os advogados chamam de
“supérstite” resolveu não comparecer ao féretro pretextando um cansaço
insuspeito e uma dor de cabeça suspeita, e afinal não terá que encarar ao vivo
a choração das carpideiras nem suportar os olhares de misericórdia dos fariseus
de farrancho.
Passada a comoção do préstito, todos os
interessados hão de encontrar um intérprete para decifrar meu testamento cheio
de dívidas e sem dividendos.
Flutuo como um fantasma por entre vasos
de concreto rústico e suas flores emurchecidas, por detrás das pedras tumulares
recobertas de musgo e limo, por sobre as cabeças da canalha que finge
sobriedade e por dentro dos curiosos que se acotovelam, todos esticando o
pescoço como galinhas ciscando para ver o esquife baixar à sepultura atado por
dois pedaços de corda e manuseado por dois desnutridos sepultureiros que tratam
a embalagem como se fosse uma caixa de cebolas, ora a cabeça batendo contra o
lado de cima, ora os pés se achatando contra o lado de baixo, amarfanhando o
terno grosso de lá azul-marinho que já frequentara muitos enterros de terceiros
e que afinal tantas vezes vai à fonte que desta vez fica, deslocando o nó da
gravata para o lado esquerdo como o faria um bêbado, somente as mãos permanecem
pousadas uma por sobre a outra provavelmente por falta do que fazer e do que
coçar nesta eterna – e ponha eterna nisso – insensibilidade.
Flutuo como um fantasma porque sou um
fantasma, vagando ao sol das onze, e fantasma vagando ao sol não arrepia nem
amedronta, é transparente como o vácuo, não faz sombra nem ruído, não tira
partido do ultrapassado recurso do arrastar de correntes e não causa qualquer
espécie de constrangimento.
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