quinta-feira, 28 de dezembro de 2017





O CINEMA

(Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992. Vale observar que a situação, a terminologia e os filmes mencionados retratam uma ida ao cinema trinta e cinco anos atrás.)
(Parte 2)

O quarto problema foi contornado, pois na minha frente se senta um casal de namorados que de tão agarradinhos pareciam uma só pessoa, o que abre um formidável espaço visual que permite que eu me ajeite na poltrona da maneira mais confortável possível. Aí então o quinto, terrível e inevitável problema: o jornal da tela.
“Amplavisão filmando ao Brasil vai informando”, começa o locutor.
“Na progressista cidade de Ortigueira, no norte do Paraná, foram inauguradas as dependências do Grupo Escolar Princesa Isabel, que irá melhorar o padrão de ensino para as crianças da região. Participaram da festividade importantes figuras civis, militares e eclesiásticas, falando na ocasião o senhor Bernardo Ortigão, prefeito de Ortigueira, que enalteceu a importância do ato”.
A música de Billy Vaughan serve de fundo para os créditos, com destaque para o produtor Primo Carbonari.
Depois, uma pausa e “Twentieth Century Fox” na tela.
Enfim começa o filme – aquele antigo sucesso de setenta e dois – e a gente se emociona, e sofre, e torce, e ri, e se agita sob a magia da direção bem-feita, da trama bem urdida, da fotografia perfeita e do desempenho notável da atriz coadjuvante que mais uma vez engoliu a estrela principal (Elisabeth Taylor jamais perdoou Mia Farrow por isso).
Terminado o filme surge o sexto problema – a saída do cinema. Vemos aterrorizados a massa reunida lá no saguão se espremendo e se preparando para invadir a sala de projeção tão logo saia o último assistente, e de pronto nos vem à mente uma cena que somente poderia ser reproduzida por Kubrick ou Spielberg – a invasão acontecer antes que consigamos sair, e então a morte por pisoteamento, embora um pisoteamento com muita arte e com gosto de ketchup.      
Enfim saímos, alcançamos a rua, desviamos de dois carrinhos de cachorro-quente e um de pipoca e também de um inoportuno moleque querendo nos vender à força uma barra de chocolate, uma caixa de chicletes ou um pacotinho de drops Dulcora – a delícia que o paladar adora e vêm embrulhadinhos um a um – e partimos rumo ao perigo.
Vencida mais esta etapa, conseguimos alcançar o carro que, surpreendentemente, ainda está lá, com seus quatro pneus, suas portas, seus vidros, seu espelhos laterais, seu motor e seu tanque cheio. E, surpresa das surpresas, sem o proverbial tomador de conta a nos extorquir. Então vamos de volta pra casa para dar o nosso merecido descanso e o justo descanso ao Fusquinha com uma noite na garagem protegido do sol, do sereno e da chuva.
Enfim chegamos em casa, e com o copo de leite na mão ligamos a televisão naquele canal alternativo para descobrir que hoje, excepcionalmente, será transmitido na íntegra, sem cortes e dublado em português um filme que foi grande sucesso nos anos setenta.
Eu me afundo na poltrona pensando que desta vez eu teria que aturar uma dublagem mal-acabada onde o personagem diz “actually I don’t drink whisky” ou “you should wear a monkey suit” e o tradutor nos arrasa com “atualmente eu não bebo uísque” e “você devia vestir um paletó de macaco”, quando começo a perceber que o filme é o mesmo já visto horas antes com Elisabeth Taylor e seus chiliques, após correr todos os riscos que um cidadão pode correr numa metrópole dita civilizada.

Mudo então de canal e começo a assistir a um debate sobre economia e negócios.  

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