O CINEMA
(Conto
publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992. Vale observar que a situação, a
terminologia e os filmes mencionados retratam uma ida ao cinema trinta e cinco
anos atrás.)
(Parte 2)
O quarto problema foi contornado, pois na minha frente se senta um casal de namorados que de tão
agarradinhos pareciam uma só pessoa, o que abre um formidável espaço visual que
permite que eu me ajeite na poltrona da maneira mais confortável possível. Aí
então o quinto, terrível e inevitável problema: o jornal da tela.
“Amplavisão filmando ao
Brasil vai informando”, começa o locutor.
“Na progressista cidade de
Ortigueira, no norte do Paraná, foram inauguradas as dependências do Grupo
Escolar Princesa Isabel, que irá melhorar o padrão de ensino para as crianças
da região. Participaram da festividade importantes figuras civis, militares e
eclesiásticas, falando na ocasião o senhor Bernardo Ortigão, prefeito de
Ortigueira, que enalteceu a importância do ato”.
A música de Billy Vaughan
serve de fundo para os créditos, com destaque para o produtor Primo Carbonari.
Depois, uma pausa e “Twentieth
Century Fox” na tela.
Enfim começa o filme –
aquele antigo sucesso de setenta e dois – e a gente se emociona, e sofre, e
torce, e ri, e se agita sob a magia da direção bem-feita, da trama bem urdida,
da fotografia perfeita e do desempenho notável da atriz coadjuvante que mais
uma vez engoliu a estrela principal (Elisabeth Taylor jamais perdoou Mia Farrow
por isso).
Terminado o filme surge o
sexto problema – a saída do cinema. Vemos aterrorizados a massa reunida lá no
saguão se espremendo e se preparando para invadir a sala de projeção tão logo
saia o último assistente, e de pronto nos vem à mente uma cena que somente
poderia ser reproduzida por Kubrick ou Spielberg – a invasão acontecer antes
que consigamos sair, e então a morte por pisoteamento, embora um pisoteamento
com muita arte e com gosto de ketchup.
Enfim saímos, alcançamos a
rua, desviamos de dois carrinhos de cachorro-quente e um de pipoca e também de
um inoportuno moleque querendo nos vender à força uma barra de chocolate, uma
caixa de chicletes ou um pacotinho de drops Dulcora – a delícia que o paladar
adora e vêm embrulhadinhos um a um – e partimos rumo ao perigo.
Vencida mais esta etapa,
conseguimos alcançar o carro que, surpreendentemente, ainda está lá, com seus
quatro pneus, suas portas, seus vidros, seu espelhos laterais, seu motor e seu
tanque cheio. E, surpresa das surpresas, sem o proverbial tomador de conta a
nos extorquir. Então vamos de volta pra casa para dar o nosso merecido descanso
e o justo descanso ao Fusquinha com uma noite na garagem protegido do sol, do
sereno e da chuva.
Enfim chegamos em casa, e
com o copo de leite na mão ligamos a televisão naquele canal alternativo para
descobrir que hoje, excepcionalmente, será transmitido na íntegra, sem cortes e
dublado em português um filme que foi grande sucesso nos anos setenta.
Eu me afundo na poltrona
pensando que desta vez eu teria que aturar uma dublagem mal-acabada onde o
personagem diz “actually I don’t drink whisky” ou “you should wear a monkey
suit” e o tradutor nos arrasa com “atualmente eu não bebo uísque” e “você devia
vestir um paletó de macaco”, quando começo a perceber que o filme é o mesmo já
visto horas antes com Elisabeth Taylor e seus chiliques, após correr todos os
riscos que um cidadão pode correr numa metrópole dita civilizada.
Mudo então de canal e
começo a assistir a um debate sobre economia e negócios.
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