sexta-feira, 19 de janeiro de 2018





A JUSTA ENTRE O ZÉ DA ROSINHA E O MAL-AFAMADO AGOSTINHO

(Conto premiado em 1º lugar no XXIII Concurso Literário Cidade de São Luís, em 1997, e depois publicado no livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 1)

O Nordeste é pródigo em cantadores e contadores.
Cantadores do agreste, com a viola de cordas de metal, a história e as histórias se propagando de geração em geração, de cantador em cantador, quer na beira da fogueira quando da caçada árida e sem urzes, quer na mesa da quitanda ao lado da cangibrina ardida e do tabaco picado, quer na praça do mercado entre frutas e peixes que exalam a graveolência acre do fim das feiras.
Já os contadores são uma espécie de cantadores sem viola e sem rima, dissecando num dedinho de prosa situações inteiras, cômicas ou patéticas, picantes ou constrangedoras, fazendo chegar aos ouvidos do escutante fatos narrados e fantasiados com entonações precisas e criando um clima apropriado para o grande final, dai mostrando orgulhoso a sua porção artista, fazendo vênia às gargalhadas dos ouvintes com a expressão peralta nos olhos.
Um exemplo de bom contador é meu amigo João Rodrigues Casemiro, mais conhecido como João Lito dado o seu profundo envolvimento com litografia, rotogravura e outras habilidades gráficas.
Foi de João Lito que eu ouvi a história do cantador Zé da Rosinha e do ladrão Agostinho, e é baseado nela que eu transformo o contador em prosador sem receio de estar plagiando uma obra, pois em sendo apenas uma espécie de contador de um contador eu me considero simplesmente um recontador.
Então, vamos à história.
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Quem não conhece Catolé do Mato, com seus três mil e tantos habitantes, encravado por detrás da Serra dos Maturrangos, deveria conhecer.
A cidade, que se insinua entre um presépio de mesa e um cenário de novela, é um verdadeiro achado numa região perdida, a algumas horas de cavalgada até uma cidade de porte médio.
Ela não tem um bar de encontros, uma igreja para missas, uma praça com bancos de madeira, uma delegacia de delegado e cabo, um coronel de terras e um coronel de gentes. Ela tem o bar, a igreja, a praça, a delegacia, o coronel açambarcador de glebas e o coronel primo terceiro do ex-futuro prefeito e atual vereador, tudo assim no singular.
Isso torna a vida muito mais fácil, primeiro porque não é preciso a gente escolher nada, o que você precisar já está pronto ou você encomenda, qual salgadinho de festa – aqueles que dão azia no mesmo dia – e depois não é necessário inovar, pois tudo pode seguir o mesmo ritual e a mesma rotina, livrando a cara e o coração do estresse e da competitividade da vida da cidade grande tão nociva às artérias e às vênulas, às narinas e aos pulmões.
Afinal, lá existem Celestino, o dono do bar, o pároco Heráclio, mais conhecido como “o Rolho”, seu Petrônio, patrono e patrimônio da praça onde ocupa o seu banco cativo e lê sentado diariamente o jornal de antes de ontem que chegou esta manhã da capital, Lupércio, o cabo, e o delegado Vicente, que além de delegado faz as vezes de juiz de pequenas causas, o Coronel Prudentino, proprietário permanente da justiça eleitoral e também o Coronel Pelópidas, dono da Fazenda Termópilas, que ao contrário do que se pode pensar não fica num desfiladeiro, mas numa planície achatada como a sua cabeça.
Existem também, e se não existissem deveriam existir por força o chaveiro Chaves, Leite, o leiteiro, Antenor, o instalador de antenas, Carneiro, o açougueiro, Pinto, o pintor de paredes, Aguiar, o motorista, de praça, Mário, do armarinho, Porto, o porteiro da escola, Inácio, o obstetra, o barbeiro Barbosa, o contador de anedotas Hilário, o marceneiro Márcio, o coveiro Covas e last but not least, Pedro, o pedreiro – todos catolenses de primeira água e participantes involuntários desta história.   
A vida sonolenta e pacata da cidade só era tumultuada pelas festas do mês de junho e pela repetidora da Globo que teimava em derramar como se fosse ficção os absurdos e as desgraça do mundo distante, as inacreditáveis façanhas da civilização exacerbada pela intriga, pelo ódio e pelo crime, pelo desequilíbrio, pela insegurança e, desculpem a má palavra, pela improbidade.
Por isso é que você deveria conhecer Catolé do Mato com seus três mil e tantos habitantes, o Shangri-lá do sertão, onde a simplicidade abunda.


SEGUE

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