UMA NOITE SINISTRA
Conto publicado no livro “À noite, todos
os gatos” em 1998.
(Parte 3)
Parece uma profecia: chutei a parede.
Não exatamente a parede, mas o primeiro
degrau da escada.
É lógico que foi sem querer, embora não
tão lógico, mas na minha letargia, andando de um lado para o outro e olhando
para cima como se invocando o Altíssimo e todos os santos de menor escalão,
alguns anjos e até deuses mitológicos e entidades de luz, não reparei o degrau
que se debruçava impunemente como um molhe atrevido para o meio da sala.
Não só chutei a peça de granito e
cimento com força e sem chinelos como fui lançado como se por uma catapulta
para o primeiro lance da escada, os óculos se me escapulindo da cara e se
projetando sobre o vaso com um arranjo de artemijas e a barriga embicando
contra a quina do quarto ângulo, a testa no sexto.
Saio rastejando como um ápode,
sofregamente no encalço dos óculos cujas lentes já se encontram tão opacas que
francamente não faz a menor diferença tê-los ou não tê-los. Depois, inspeciono como
medida de rotina as condições do carpo e do metacarpo e de uma falange esfolada
que doem tão intensamente que, como eu suspeitava, não me incomodam em absoluto
mais do que as outras minhas chagas.
Acho que estou entrando em um plano
astral só conhecido pelos faquires e outros autoimoladores orientais, este sim
é o verdadeiro nirvana. Se eu sobreviver a esta experiência autofágica vou
pregar a Verdade em praça pública, vou elaborar um tratado sobre o efeito da
goiabada cascão sobre a salvação eterna, a mais doce forma de purificação, doce
de leite, rapadura e cocada também servem, o importante é sofrer, ser alçado às
galáxias e depois sentir a cara repousando sobre um degrau plano, duro e
acarpetado enquanto o sono chega em forma de desmaio, o telefone tocando
novamente com furor – ou será uma brincadeira pregada pela mente em delírio? –
as drogas medicamentosas ingeridas entorpecendo e embotando o raciocínio e os
movimentos, e eu me sentindo como se flutuasse. Agora não há frio nem calor, a
dor se transformou numa dormência cálida, em um bilhão de partículas que vibram
e vão se assenhoreando de todo o meu corpo, do dente ao pé.
Somente a haste dos óculos me incomoda
um pouco, pressionando como um torniquete a área compreendida entre a orelha e
a fronte.
-0-
Às oito da manhã, pontualmente como
sempre, chega dona Ernestina para cumprir com esmerado zelo sua missão de
diarista do tipo lava, passa, arruma e cozinha.
Ela cumprimenta a vizinha que varre para
o meio-fio as folhas que o outono arrancou durante a noite, abre o pequeno
portão, passa por ele e depois o fecha, então caminha pelo piso de lajotas
vermelhas que cruza com o também pequeno jardim que está – e ela olha com desaprovação
– precisando de uns cuidados.
Abre a bolsa do tamanho de uma sacola,
apanha a chave, enfia a chave na fechadura e gira duas vezes para a esquerda, abre
a porta e “oohhh!!!” entra em pânico ao ver um corpo de homem caído nos
primeiros degraus da escadaria revestida de carpete no topo de cada degrau.
Quer gritar, chamar a vizinha, os
bombeiros, a ambulância e a polícia, mas a voz não sai, as pernas tremem e ela
não consegue sair do lugar.
É claro que o corpo esparramado na
escada sou eu, dormindo enfim com todo aspecto de um morto, bêbado não, pois
bêbado que se preza não se embriaga de pijama.
A voz finalmente sai e ela afinal grita,
e eu acordo mais assustado que ela.
Acordo todo moído, a luz que vem da
janela frontal com as cortinas abertas incomoda os meus olhos, e por detrás do
vidro a cara curiosa da vizinha me incomoda muito mais.
O que importa é que eu estou vivo e surpreendentemente
sem dores, apesar de me sentir saído de um liquidificador.
Abro um olho, depois outro, recomponho
os óculos e vejo através das lentes sujas a expressão boquiaberta de dona
Ernestina e a cara da vizinha impressa na janela e a bolsa que parece uma
sacola caída no chão, por onde se espalham as artemijas que foram cuspidas do
vaso.
Na falta de algo melhor para dizer que
fosse decentemente apropriado e que tivesse o mínimo sentido para explicar a
cena dantesca, balbuciei – “eu ia ao dentista, dona Ernestina, mas mudei de
ideia e acabei ficando por aqui mesmo” – acreditando que o tom da explicação
pudesse quebrar o encanto do inverossímil da cena.
Ato contínuo, levanto-me altivamente como
um general que caiu do cavalo e subo com grandiosidade a escada em direção ao
quarto para tentar direcionar a minha cabeça e pensar no que fazer da vida.
Na testa, uma marca levemente vermelha.
Dona Ernestina, em pé no umbral da sala,
me acompanha com os olhos e com a boca aberta, o coração voltando à
normalidade.
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