domingo, 14 de janeiro de 2018





UMA NOITE SINISTRA

Conto publicado no livro “À noite, todos os gatos” em 1998.

(Parte 2)

Do amor ao dentista em plena madrugada nasceu um grande ódio pela natureza e por essa maldita engenharia biológica que permite dentes cariados, unhas encravadas, furúnculos nas partes mais incômodas, calos na sola do pé, micose e afta, e isso por muitas vezes e por toda a vida afora neste vale de lágrimas, como dizem as Sagradas Escrituras.
Será que Ele chegou também a sentir dor de dentes nas madrugadas palestinas, comendo do pão e bebendo do vinho, e se teve, teria Ele questionado ao Pai, que seja feita a Vossa vontade assim na terra como neste quarto de abajur aceso, lençóis revirados e mãos crispadas?
E, como se não bastasse, o telefone toca.
No silêncio da casa e no adiantado da noite, seu “trimmmm!...” me soa como uma sirene de fábrica ou de um campo de concentração, como um silvo de trem rolando pela pradaria, como um alarme de penitenciária, como uma badalada na torre dos sinos, fosse minha cabeça um campanário.
São três da manhã, ou é algum maluco querendo me impingir a assinatura de um jornal ou de um consórcio de eletrodomésticos, ou é uma notícia aterradora, dessas que a gente recebe às três da manhã, mais uma morte súbita entre os relativos ou algum parente danado vindo do raio que o parta como alma penada a pedir guarida.
Se isso acontecesse a sono pleno, numa noite dessas consideradas normais, eu acordaria assustado e taquicárdico, passaria a mão nos óculos que dormem estáticos de barriga para cima sobre o criado-mudo ao lado da minha cabeceira e borraria as lentes com os dedos gordurosos do calor noturno e suas coceiras, sentiria os pelos se arrepiarem por ação da adrenalina e a camisa do pijama se empapando de suor e, de ouvido em pânico – “trimmmm!”... silêncio... “trimmmm!”... acordava para a realidade... “trimmmm!”... pausa para levantar... “trimmmm!”... enfiando os pés nos chinelos trocados...  “trimmmm!”... cambaleando escada abaixo... “trimmmm!”... ”trimmmm!”... “trimmmm!”... já vou!, já vou!...”trimmmm!” alô!!!, alô!!!,  e então “teng...” “teng...” “teng...” “teng...”, compassado como um aviso de volta às aulas ou um disco de acetato riscado – “oh, merda!!!” – e voltaria para a cama com os olhos acesos maldizendo a tecnologia e ainda ouvindo o sinal de ocupado mesmo com o aparelho novamente no gancho, desligado e finalmente quieto, não sem antes sentar por alguns minutos na poltrona ao lado para recuperar o fôlego, repensar a existência e aguardar uma nova chamada que nunca vem.
Isto se eu estivesse a sono pleno.
Mas como eu estou vagando pelas dependências da casa como um lobisomem sem destino, como um pária sem rumo, como um carpidor velando o seu morto, com a respiração, o dente e as vísceras em desordem, o máximo que faço é descer as escadas caminhando duro como um autômato, cada “trimmmm!” uma potente martelada na cabeça – mas o que é uma martelada na cabeça para quem tem goiabada cascão no nervo exposto do molar superior esquerdo? – e como um robô que mais parece uma figura de Madame Tussaud chego perto do telefone e o retiro do gancho para ouvir o mesmo “teng...” “teng...” “teng...” “teng...” da noite mal dormida.
Com os nervos em farrapos e pragas rogadas contra o bispo, o prefeito, o chefe da repartição, contra Graham Bell e a concessionária, volto a sentir outra agulhada enquanto os ouvidos zunem e o cachorro do vizinho late.
Tenho ganas de dar um chute na parede, assim, quem sabe, o pé se quebra e a dor pelo menos se transfere de lugar, não é possível que o cérebro tenha tanta memória para armazenar mais dores do que as que já sinto, Jacinto.
Se eu telefonar para você agora e desatar o nó das minhas desesperanças, doutor Jacinto, é bem provável que você me convide para uma consulta rápida e sem volta, um curativo, uma extração e depois um tiro na boca, para que eu nunca mais venha a lhe importunar durante as madrugadas, seria capaz até de usar uma britadeira à guisa de broca e arrancar-me a língua, a glote e a epiglote.
É mais prudente, dente por dente, esperar o dia e as coisas clarearem e tomarem a forma de normalidade, uma simples norma de formalidade.


SEGUE

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