UMA NOITE SINISTRA
Conto publicado no livro “À noite, todos
os gatos” em 1998.
(Parte 2)
Do amor ao dentista em plena madrugada
nasceu um grande ódio pela natureza e por essa maldita engenharia biológica que
permite dentes cariados, unhas encravadas, furúnculos nas partes mais
incômodas, calos na sola do pé, micose e afta, e isso por muitas vezes e por
toda a vida afora neste vale de lágrimas, como dizem as Sagradas Escrituras.
Será que Ele chegou também a sentir dor
de dentes nas madrugadas palestinas, comendo do pão e bebendo do vinho, e se
teve, teria Ele questionado ao Pai, que seja feita a Vossa vontade assim na terra
como neste quarto de abajur aceso, lençóis revirados e mãos crispadas?
E, como se não bastasse, o telefone
toca.
No silêncio da casa e no adiantado da
noite, seu “trimmmm!...” me soa como uma sirene de fábrica ou de um campo de
concentração, como um silvo de trem rolando pela pradaria, como um alarme de
penitenciária, como uma badalada na torre dos sinos, fosse minha cabeça um
campanário.
São três da manhã, ou é algum maluco
querendo me impingir a assinatura de um jornal ou de um consórcio de
eletrodomésticos, ou é uma notícia aterradora, dessas que a gente recebe às
três da manhã, mais uma morte súbita entre os relativos ou algum parente danado
vindo do raio que o parta como alma penada a pedir guarida.
Se isso acontecesse a sono pleno, numa
noite dessas consideradas normais, eu acordaria assustado e taquicárdico,
passaria a mão nos óculos que dormem estáticos de barriga para cima sobre o
criado-mudo ao lado da minha cabeceira e borraria as lentes com os dedos
gordurosos do calor noturno e suas coceiras, sentiria os pelos se arrepiarem
por ação da adrenalina e a camisa do pijama se empapando de suor e, de ouvido
em pânico – “trimmmm!”... silêncio... “trimmmm!”... acordava para a
realidade... “trimmmm!”... pausa para levantar... “trimmmm!”... enfiando os pés
nos chinelos trocados... “trimmmm!”...
cambaleando escada abaixo... “trimmmm!”... ”trimmmm!”... “trimmmm!”... já vou!,
já vou!...”trimmmm!” alô!!!, alô!!!, e
então “teng...” “teng...” “teng...” “teng...”, compassado como um aviso de
volta às aulas ou um disco de acetato riscado – “oh, merda!!!” – e voltaria
para a cama com os olhos acesos maldizendo a tecnologia e ainda ouvindo o sinal
de ocupado mesmo com o aparelho novamente no gancho, desligado e finalmente
quieto, não sem antes sentar por alguns minutos na poltrona ao lado para
recuperar o fôlego, repensar a existência e aguardar uma nova chamada que nunca
vem.
Isto se eu estivesse a sono pleno.
Mas como eu estou vagando pelas
dependências da casa como um lobisomem sem destino, como um pária sem rumo,
como um carpidor velando o seu morto, com a respiração, o dente e as vísceras
em desordem, o máximo que faço é descer as escadas caminhando duro como um
autômato, cada “trimmmm!” uma potente martelada na cabeça – mas o que é uma
martelada na cabeça para quem tem goiabada cascão no nervo exposto do molar
superior esquerdo? – e como um robô que mais parece uma figura de Madame
Tussaud chego perto do telefone e o retiro do gancho para ouvir o mesmo
“teng...” “teng...” “teng...” “teng...” da noite mal dormida.
Com os nervos em farrapos e pragas
rogadas contra o bispo, o prefeito, o chefe da repartição, contra Graham Bell e
a concessionária, volto a sentir outra agulhada enquanto os ouvidos zunem e o
cachorro do vizinho late.
Tenho ganas de dar um chute na parede,
assim, quem sabe, o pé se quebra e a dor pelo menos se transfere de lugar, não
é possível que o cérebro tenha tanta memória para armazenar mais dores do que
as que já sinto, Jacinto.
Se eu telefonar para você agora e
desatar o nó das minhas desesperanças, doutor Jacinto, é bem provável que você
me convide para uma consulta rápida e sem volta, um curativo, uma extração e
depois um tiro na boca, para que eu nunca mais venha a lhe importunar durante
as madrugadas, seria capaz até de usar uma britadeira à guisa de broca e
arrancar-me a língua, a glote e a epiglote.
É mais prudente, dente por dente,
esperar o dia e as coisas clarearem e tomarem a forma de normalidade, uma
simples norma de formalidade.
SEGUE
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