A JUSTA ENTRE O ZÉ DA
ROSINHA E O MAL-AFAMADO AGOSTINHO
(Conto premiado em 1º lugar no XXIII
Concurso Literário Cidade de São Luís, em 1997, e depois publicado no livro “À
Noite, Todos os Gatos”, em 1998)
(Parte 4 - Final)
A
lengalenga se repetiu, arrastada – “a que horas, etcetera... etcetera... quem,
quando, onde, por que?... – e a conclusão de Antenor, Leite, Barbosa e do tio
da capital foi a mesma, além de Chaves, o chaveiro, que aparentemente sem nada
a ver com o crime foi também convocado para depor, dada a sua suspeitosa
habilidade como profissional (e se o ladrão não tivesse pulado a janela nem
passado por debaixo da rede como um réptil nem voltasse com o pinho mudo nas
ventas do ressonante Zé da Rosinha, mas simplesmente aberto a porta da frente
com aquela famosa chave mestra que só os chaveiros – e ladrões – conseguem ter?).
Mas,
de acordo com o Antenor, escaldado em galgar telhados e escalar paredes, só
podia ter sido o Agostinho. Conforme Leite, especialista em transformar água em
leite, só podia ter sido o Agostinho. Na opinião de Barbosa, que além de barba
e cabelo também fazia o seu ponto de jogo do bicho por detrás do acortinado que
cobria a porta do fundo da barbearia, só podia ter sido o Agostinho.
Até
o tio que veio da capital trazendo algumas caixas de uísque feito de chá mate made in Cabrobró tinha plena certeza de
que o mal-afamado Agostinho era o responsável pelo sumiço da viola, mesmo sem
tê-lo propriamente conhecido.
Por
medida de consciência, o delegado dispensou todas as testemunhas e foi se
aconselhar com Haráclio, o padre Rolho, e com o Coronel Prudentino, que às três
da tarde tomavam um bom vinho do Porto e jogavam uma partidinha de escopa,
discutindo os detalhes da quermesse que a igreja faria realizar, ao som de Gregório
Barrios cantando Noche de Ronda, enquanto aproveitavam para dividir o rebanho –
estes vão para o céu e aqueles vão para o eleitorado.
Ambos,
após consultados, foram unânimes a respeito da culpabilidade do futuro réu, a
quem Rolho já considerava uma ovelha fora do seu rebanho e Prudentino preferia vê-lo
alistado nas hostes inimigas.
Isso
posto, toda a cidade comungando com o mesmo propósito, só restava o delegado
chamar o já ressabiado Agostinho para uma acareação, ou melhor, para uma
execração pública com todos os envolvidos, vítima, testemunhas e enxeridos.
-0-
Passava
das duas da tarde quando o delegado Vicente vestindo um costume de casimira
inglesa que era simplesmente um despropósito para o calor da região, o ventilador
de pedestal chacoalhando a hélice dentro da armação de arame enferrujado num
ruído que seria infernal não fosse a natural zoada feita na sala apertada pelos
cidadãos catolenses, limpou a garganta com um som deselegante e declarou aberta
a sessão.
A
sessão, na verdade e em todos os aspectos legais e jurídicos era apenas um
interrogatório com direito a plateia – fosse Agostinho mais astuto e menos matuto, teria pedido um
advogado que se encarregaria de solicitar o esvaziamento da sala a fim de que o
plenário deixasse de parecer um circo.
Com
todos sentados no fórum extraordinário, Agostinho é convocado a depor,
respondendo às já esperadas perguntas do delegado com as já esperadas
respostas, pois como todo bom safado ele nega tudo com a maior cara de mártir.
Não
fui, não sei quem foi, não sei tocar viola, não gosto de música, não tenho nada
a ver com isso, não me lembro e outras evasivas do gênero fizeram parte das
suas declarações entre os “ooohs” e “aaahs” da plateia cada vez menos
convencida da inocência do salafrário.
Alguns
sorriam entre o incrédulo e o divertido, o padre olhava para o alto somo que
buscando o auxílio da Providência e Zé da Rosinha, quase conformado, calculava
mentalmente o tamanho do prejuízo.
O
coronel já havia preparado um discurso de improviso onde, em seu nome e em nome
do partido, ofereceria em praça pública um novo instrumento que mandaria vir do
Rio de Janeiro, mas deixaria a surpresa para o gran finale.
Lá
pelas tantas, depois de duas horas de negativas e amolações, o delegado, já um
pouco extenuado, resolveu encerrar a sessão e dispensar todo mundo, inclusive o
acusado, por absoluta falta de provas e convencido de que iria continuar dando
voltas como um cachorro à cata do próprio rabo sem chegar à Ceca nem à Meca.
Segundo
a praxe, em meio ao silêncio pontilhado de murmúrios, o delegado olhou
gravemente para Agostinho que exibia a sua cara de sonso e disse com a voz
pausada e a expressão resignada pelo infortúnio do insucesso – “considerando o
álibi apresentado pelo acusado, considerando a pouca evidência mostrada nos
depoimentos e a consequente insuficiência de provas, vejo-me na obrigação de
absolver o senhor Agostinho”.
Álibi?
Evidência? Absolver?
Completamente
transtornado, Agostinho remexeu-se na cadeira. Não entendia esse português
difícil, nem esse palavrório de juiz e muito menos entendia de leis.
Na
sua cabeça martelava a frase do delegado-juiz como um gongo de metal – “...vejo-me
na obrigação de absolver o senhor Agostinho...”
Todos
olharam para a cara de pasmo do já desacusado, esperando por uma reação – um sorriso
de zombaria, um gemido de compaixão, um estertor de alívio – mas o que ouviram
foi uma voz fraca, combalida, balbuciante, tartamudeante.
-Faça
isso não doutor, esse negócio de absolver... Faça isso não, que eu “adevolvo” a
viola pro Zé da Rosinha...
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