sábado, 27 de janeiro de 2018





TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 1)


Tive outro dia a oportunidade de me encontrar com um verdadeiro homem do nosso século, muito embora talvez Linneu o tivesse classificado, se o tivesse conhecido e tivesse por ele despertado o seu interesse científico, como um raro espécime do século 19, dado o seu traje irretorquível, seu nome inusitado – Fiordermundo Hyppolito qualquer coisa – sua aparência hirsuta de Rattus Norvegicus e o nome de sua suculenta esposa, a jovem e frívola Calcedônia.
Conheci Fiordermundo como que por acaso, numa disputa de cadeiras na famosa Cantina do Carlino, como sempre lotada, onde como sempre, após um ligeiro flerte com a jovem que sorria à Cardinale dos bons tempos, fato felizmente não detectado pelo marido, a as costumeiras gentilezas – “por favor... por favor...” e acabamos sentados juntos à mesma mesa, começando por tragar uma fortíssima grappa para depois ordenarmos um poderoso Valpolicella safra 88 e um fettuccine com polpetas, com direito a antepasto à base de fungos secos e miolo de alcachofra.
Naquele dia, um belo domingo de sol, eu havia saído de casa disposto a degustar as artes culinárias e os molhos ensandecidos que fizeram a alegria e o colesterol dos meus antepassados – o avô suspirava à mera menção de uma spaghettata alle vongole ou com salsa di pomodoro, o cabernet tinto, a mesa farta, a salada regada a azeite, orégano, vinagre de vinho e pimenta em pó e a pagnotta cortada no seio da avó com uma faca de assustar perdigueiros.
Na caminhada dominical atravessei ruas e dobrei esquinas, o apetite crescendo voraz e a boca salivando pelos pensamentos pecaminosos da gula.
A avenida central mantinha a antiga imponência de capital europeia, com seus postes forjados em colunas de ferro ornadas no mais puro estilo parisiense muito embora tivessem vindo da Escócia, como atestavam as pequenas placas com o nome Mac Farlane’s Casting quase escondida no sopé, tendo no alto duas lâmpadas de mercúrio disfarçadas de lampião de gás. Na avenida também se encontravam expostas diversas fileiras de jardineiras de concreto trabalhado de onde brotavam florezinhas  silvestres para enfeitar a calçada, a banca de revistas com seus escândalos também expostos, o recolhedor de lixo de metal perfurado conflitando sua modernidade com o ar de belle époque do conjunto, o vendedor de bilhetes da sorte grande, e o eterno vagabundo a fumar bagana de cigarro e a olhar para o céu com a confiança de quem sabe onde vai dormir e o que vai comer hoje, uma excentricidade até para mendigos de classe média como eu, diga-se de passagem.    
No caminho, parei para conversar com o bilheteiro – “tive um sonho especial onde um gato pardo corria atrás de um padre de batina preta, como os antigos, que pedalava um patinete com dizeres panfletários pintados na sua base exaltando o comunismo e seus chavões” – ao que o bilheteiro, depois de analisar minhas palavras como um psicanalista em frente ao divã, como uma pitonisa cigana debruçada diante das cartas do tarô, como uma vidente de olhar de cristal diante de uma bola de cristal, como um sociólogo diante da fome do universo, como Noé diante da perspectiva de uma estiagem de seis meses ou como um marido apanhado com a boca na botija, retrucou sabiamente, com a experiência de uma carreira herdade do avô a pai com ramificações pelos tios, pelos primos meio tortos e até pelos irmãos bastardos – “gato que corre atrás de padre dá cachorro”.
Eu duvidei da sua interpretação como duvidaria da interpretação geológica de um rabdomante que analisasse as caries de um peixe precambriano impresso numa caverna antes de ver a água jorrar, mas me lembrei de uma frase salvadora – “jogar é a única forma de ganhar no jogo” – frequentemente declinada pelo meu amigo Muniz Coelho, um talismã ambulante de tal sorte que ele não possuía só um, mas dois pés de coelho, dos quais jamais se separava, quer nas caminhadas matinais pelas alamedas floridas do seu logradouro quer ao abrigo dos sapatos do mais fino cromo alemão.
Tendo como fundamento tal pensamento, adquiri de pronto as vinte frações.
Ipso facto, lato sensu, dobrei e embolsei o amuleto da sorte pensando distraidamente em quantas toneladas de tagliarini alla puttanesca seria possível consumir com tantos zeros à direita da unidade do tesouro nacional se eu fosse premiado, uma desalentadora possibilidade em um milhão – embora com certeza o 06418 jogado vai dar 29357, nenhum número igual ou repetido, nem que ordenado na ordem inversa da soma das hipotenusas de todos os catetos como se o matemático fosse Tucídides em vez de Pitágoras, dada a previsão da expectativa ou, pior ainda, dada a expectativa da previsão.

Muito satisfeito se não pela aquisição da cornucópia lotérica mas pelo menos pelo meu raciocínio claro e cristalino, lógico e contundente, e principalmente com a resignação de ser mais uma vez logrado, um autocrime de lesa-pátria e lesa-bolso, paro afinal em frente ao Carlino de portas envidraçadas com desenhos Art-Nouveau e o estilo decididamente Chicago das famílias dos anos trinta, e entro majestosamente tendo no bolso uma carteira não muito recheada, meus cartões de crédito comprometidos, meu talão de cheques exalando seus últimos suspiros e uns poucos níqueis tilintando como trenó de Natal, além do bilhete, é claro.  

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