A SAPATARIA
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
“Pois não?”
Caixeiro atendente de loja de calçados é
a figura mais rápida e prestativa da face da terra, algo assim como um anjo da
guarda do consumidor, um simpático cumpridor de ordens, um valete de copas.
A postura é sempre imaculada, aberta mas
séria, controlada, respeitosa, sem atrevimentos nem peraltices, trazendo no rosto
sorriso cortês do agente de seguros antes da venda, do gerente do banco antes
de receber a aplicação, da mundana antes de acertar o preço, do candidato antes
de ser eleito, do médico antes de matar o paciente.
Na calçada passam passantes empacotados.
A coisinha enxuta que analisava o
conteúdo da vitrine a princípio não se dá conta da aproximação do vendedor, no
ângulo morto que confunde a sua silhueta esbelta com a quina do vitral. Ele se
coloca então numa posição mais estratégica, mais estudada, para se fazer notar,
a calça cinza flanando levemente ao sopro da brisa da tarde, a camisa branca e
pura adornada por uma gravata fininha, o cabelo caído na testa e a nova
tentativa.
“Pois não?”
A coisinha enxuta, de saia com os
joelhos à mostra, sandália de tiras e uma blusinha arejada finalmente vê a
imagem do anjo refletida no vidro e vira o rosto na sua direção, olhar curioso
e ouvidos atentos como um cão pequinês, inquirindo embora sem falar.
“Já escolheu?”
“Ah, você trabalha aqui? Não, estou só
olhando...”
“Pois não, fique à vontade... nós temos
sandálias e sapatos finíssimos...”
“Gostei muito daquela...” e aponta com o
beicinho.
Conversa vai, conversa vem, entram na
loja e a coisinha enxuta se senta diante de um espelho naquela posição
geográfica em que se sentam todas as coisinhas enxutas que vão comprar
sandálias e sapatos – este é um dos motivos pelos quais os vendedores não se
importam com os baixos salários ou com a aporrinhação, e bem ele, que num certo
dia sonhou que era vendedor de lingerie...
A loja lotada nesta época de fim de ano
aumentava a confusão de caixas e pacotes, outros vendedores andavam de um lado para
outro e outros clientes se colocavam também em posições geográficas, mas
nenhuma tão estratégica e nenhuma outra freguesa tão enxuta como a coisinha
enxuta ali na frente.
Vem a sandália vermelha – “não é bem
essa que eu queria” – vem a azul escuro – “não gostei da fivela” – vem a cor
havana – “não gostei da cor, não combina com a minha pele” – (qualquer cor,
senhorita enxuta, combina com a sua pele!) – e o vendedor atencioso tira a
sandália da caixa, alisa o pé da enxutinha (que dedos, meu Deus!, vale a pena
ser uma frieira para habitar num recesso desses!) põe a sandália na caixa,
alisa o tornozelo (que perfume, meu Deus!, vale a pena ter nariz para cheirar
um pezinho desses!) – “esta está apertando um pouco” – e o vendedor olha para
cima, visualizando o rostinho enxuto com a expressão enxuta e depois (que
coisa, meu Deus!, vale a pena estar vivo para poder se encantar com a visão de
uma vale como esse!) desce lentamente a visão por toda a área geográfica protegida
por uma simples saia acima do joelho e se sente nas nuvens (que maciez, meu
Deus!, vale a pena ter as pontas dos dedos sensíveis para sentir a eletricidade
que provém destes pezinhos!) e pensa no poder das pernas, nas descargas
elétricas e, com intenso desprazer, em Benjamin Franklin.
E dá-lhe sandália, sandália de tira,
sandália sem tira, sandália de salto, sandália sem salto, sandália de dedo,
sandália de todas as cores e modelos, e a coisinha enxuta dizendo que não com o
pezinho sensual no ritual de calça-descasa e as caixas se amontoando como uma
pirâmide de papelão, tomando toda a lateral esquerda da loja.
A matrona, sentada também
geograficamente no lugar ao lado há mais de dez minutos, está esperando a sua
vez de ser atendida, pacientemente aguardando por algum caixeiro-atendente.
Definitivamente, a coisinha enxuta não
está para brincadeira e depois de dezesseis pés esquerdos provados com
dezesseis pés direitos dentro da caixa de papelão com o papel de seda
amarfanhado e dezesseis caixas de papelão com as respectivas tampas espalhadas
pelo carpete vermelho e duplicando a sua quantidade no espelho inclinado, ela
se levanta como a condessa descalça, como a Cinderela que não achou o sapatinho
de cristal, deixando o pobre príncipe ajoelhado com cara de paspalho e sai
rebolando discretamente, na direção de outra loja de calçados para mais meia
hora de tortura e desesperança de outro vendedor.
O olhar penetrante da matrona cai de
chofre dobre o apatetado rapaz.
“Pode me atender agora?”
“Sim senhora...” responde meio
amedrontado. “O que a senhora deseja?”
Quero experimentar uma dessas sandálias,
aquela vermelha, por exemplo”.
E vem de novo a sandália vermelha – “não
é bem essa que eu queria...” – e vem azul escuro – “não gostei da fivela...” –
e vem a cor havana...
E o vendedor segue angustiado, tira
sandália, bota sandália, e alisa o pé cheio de calosidades – “que coisa, meu
Deus!, parece o casco de uma tartaruga!”, e abre caixa, e fecha caixa, e puxa o
dedão para ajustar a tira – “que cheiro, meu Deus!, é preciso um tonel de
polvilho antisséptico para disfarçar essa eca!” – e a matrona reclamando –
“está apertando o meu joanete!” – “que cara, meu Deus!, parece um buldogue com
olhos remelentos!” – e vai por aí afora.
Per omnia saecula.
Caixeiro atendente de loja de calçados é
também a figura mais infeliz da face da terra, algo assim como um segurador de
alça de caixão, um lacaio cumpridor de ordens, um dois de paus.
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