O EMPRÉSTIMO
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
Encontro com um velho conhecido numa rua
qualquer da cidade.
“Rapaz, que bom te encontrar! Estou
mesmo precisando de um favor!” – diz ele, mesmo antes de dizer “bom dia”.
Esta forma de abordagem, macia e
insidiosa sempre me faz ouriçarem os pelos da nuca.
“Sim?” – olhando bem firme nos olhos,
tentando ler a mente do meu opositor assim como o fazem os pugilistas nas
grandes noitadas onde se disputa um título, o cinturão em jogo.
“Você sabe, estou para receber uma grana
de um negócio que eu fiz no interior, coisa assim de mais de dois mil, mas no
momento estou precisando de cem, só até terça feira”.
O inimigo está ajustando a artilharia
pesada, ele fugiu dos olhos nos olhos e se concentra em algum ponto localizado
meio metro acima do bico do meu sapato.
Quando abro a boca para contra-atacar,
ele dispara outro obus – “já consegui o cheque ouro do Banco do Brasil, mas o
gerente só vai liberar na semana que vem, sabe como é, meu saldo médio não
estava muito alto e ele tem que ajeitar as coisas primeiro, mas o importante é
que o cheque sai”.
Fico imaginando se o Cleto, justamente
apelidado de Cleto Nó Cego pela turminha do bairro e de Cleto Fundo Perdido
pelo pessoal da repartição onde ele assina o ponto teria algum cacife para ter
conta no Banco do Brasil. Para amenizar meus pensamentos e saber até onde vai a
sua inventividade pergunto que negócio é esse que vai lhe render mais de dois
mil, detalhes, sabe como é, meramente detalhes – “Ah, são umas terras que eram
do meu pai e foram arrendadas por um lavrador e é essa parte do arrendamento
que ele está me adiantando, a coisa toda vai render milhões. Eu estava mesmo
pensando em arranjar um sócio pra começar algum negócio, tipo comércio
varejista ou no ramo de representação, e tinha pensado até em você!”.
Fico preocupado, não pelo fato de ele
estar tentando me envolver na conversa, mas porque pelo rumo que a conversa vai
levando a pedida pode não ficar apenas nos cem.
“E para que você quer cem bem agora?”
(Pergunta feita na hora errada – meu
interlocutor tem a impressão de que eu estou concordando com o empréstimo).
“Preciso pagar uma dívida, coisa
pequena, mas eu gosto de ser correto com meus empréstimos, você sabe, mais vale
um crédito na mão do que mil moedas voando” – e ri, satisfeito com o trocadilho
de mau gosto.
Deus está vendo...
Cleto Nó Cego, o Anacleto Boa Conversa,
agora criou coragem, sentiu o ponto fraco da presa e passa a apertar o cerco,
agora deixou de olhar para o ponto imaginário a meio metro acima do bico de meu
sapato para se fixar a dez centímetros do alto do meu nariz, bem no meio dos
meus olhos.
Me sinto na linha de tiro e
contra-ataco.
“Eu bem que gostaria de ajudá-lo, mas
infelizmente ando com o bolso curto, está chegando o fim do mês e os negócios
da empresa não foram lá essas coisas...”
“Mas o que são cem pratas para você?!” –
ele me interrompe acompanhado por um jab curto no peito – “Não vai me dizer que
você está com receio de me emprestar cem paus até terça-feira!”
Não é receio, é medo, é pavor, mesmo!
“E depois eu vou convidar você pra ser
meu sócio, nós ainda vamos ganhar muito dinheiro juntos!”
Lembrei-me dos cinquenta do Alexandre,
dos cento e cinquenta do Mesquita, daquela fiança que o Antonio Carlos teve que
pagar para as Pernambucanas pra não ter seu nome no protesto e perder o crédito
e a credibilidade pra toda vida.
Lembrei-me do aparelho de TV branco e
preto que ele pediu emprestado ao seu Nicolino do bar e o vendeu sem cerimônia
alegando que precisava comprar remédios para a avó.
Lembrei-me dos três cheques sem fundo
que ele passou na mercearia do Agenor e que agora ornamentam o quadro de avisos
– cuidado com os maus pagadores – junto com outros cheques emitidos por outros
profissionais do calote.
Ele continua me apertando e tentando me
seduzir com uma lógica financeira irrefutável. Um sujeito desses deveria ser
chamado para ser o Ministro da Fazenda, tal a habilidade que tem para conseguir
recursos.
Gostaria que o chão se abrisse neste
momento e que a terra o tragasse.
Sinto ímpetos de sair correndo e
gritando como se estivesse saindo de um manicômio, mas ele me segura pelo braço
e fala sem dar uma pausa, sem respirar, sem me deixar respirar.
Estou nas cordas, de guarda baixa e ele
batendo sem parar.
Aí me lembro dos cinquentinha que ele me
pediu emprestado há mais de um ano com a mesma desculpa da compra dos remédios
da avó (mais tarde descobri que as suas duas avós já haviam ido pro beleléu
havia alguns anos e ele se justificou
que esta não era a sua avó verdadeira, mas uma senhora inválida que morava no
andar debaixo por quem ele nutria muita devoção.
Num supremo esforço lhe lancei na cara e
minha indignação – “Você já me deve cinquenta, nunca pagou e tem a coragem de
pedir mais cem?”
E ele, com a maior tranquilidade,
retrucou – “Pois é, já que eu devo cinquenta e você me deve os cem que eu pedi
você me dá os cinquenta da diferença e a gente fica quites!”
“Ou então me dá os cem e a gente acerta
a diferença depois que fechar o negócio da sociedade!”
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