EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE
EM ÉPOCA DE PROVAS
(Conto publicado em 1988 no livro
“Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em
1967)
(Parte 4)
Há quantos dias estou aqui, há quantos
meses, há quantos séculos? Já nem sei, o relógio vive girando seus braços e eu
não quero nem olhar para ele, o sol vai e vem e o máximo que eu faço agora é ir
às provas e descobrir a hora do almoço ou da privada.
Ah, aquele hotel-pensão! O dono nos
tratava como se nos pagasse em vez de nos explorar; a camareiras bonitas
cederam lugar para as feias e estas para as velhas feias, aquilo não é hotel, é
asilo, e nós, os hóspedes parecíamos atrapalhar, parecíamos interferir naquele
mundo escuro, o quarto escuro, a sala de refeições escura, o banheiro escuro, o
vaso tarjado de luto.
Melhor fez o meu tio por parte de avô,
que trabalhava como fiscal sanitário ao invés de ficar quebrando a cabeça com
tratados e dicionários, pois além de pespegar aos moradores do seu distrito
multas condizentes com o mau esgoto, ele chegava nas residências de manhãzinha,
com a bandeira amarela debaixo do braço da farda amarela, a ponto de tirar da
cama homens e mulheres com roupa de dormir, as mulheres com os olhos fechados e
os roupões abertos, e assim o tio-avô teve grandes noções de anatomia.
Estivesse ele aqui presente enfiaria a
multa na cara do gerente, ou no mínimo enfiaria a cara do gerente na latrina
mal aturável para mostrar a ele o que ele nunca quis ver.
À noite, caminho pelos bares e por casas
escusas, as pequenas lâmpadas vermelhas e as poltronas ramadas, uma ou outra se
diferenciando através de cartazes – “casa de família” – e por essa todos
passavam sem sequer tocar no portão, como um sacrário.
Depois, a volta ao hotel, os
pernilongos, os sonhos, as mulheres gargalhando, o calor, o professor detrás
dos óculos, o guarda-roupa negro crescendo na minha frente como se estivesse
caindo, as sombras se dispondo e interpondo dentro do quarto, um guarda
apitando na rua.
-0-
No outro dia a vida continua a mesma, mas
na outra noite teremos a festa de despedida do período no centro acadêmico. É o
último dia – até que enfim! – então subi nas árvores da praça para dependurar
faixas convidando a camarilha da escola para a pândega; eram risos e
brincadeiras e eu me divertia na copa das árvores bem em frente ao vetusto
prédio da escola enquanto lia nas entrelinhas o real significado dos seus dizeres
– “Cachorros, covardes, vendidos, façam alguma coisa para mudar essa vida,
vocês são acomodados como parasitas! O mundo todo é esta cidade provinciana e
quem tentar mudar esta chatice vai ser chacinado como um inseto! Coragem,
vermes, coragem!”.
As faixas valeram: a calçada em frente
ao centro está repleta de estudantes.
As escadas conduzem a gente para o alto,
a música está alta demais, mas a mim não incomoda nem um pouco, me interessam
mais as garotas subindo os degraus, é só acompanhar com o olhar para o alto que
ouviremos cantar os anjos, se o céu for assim eu me converto imediatamente, me
sujeito a todos os rituais necessários, beijo o anel do prelado e a correia do
capelão, se precisar até tomo banho de incenso.
Mas isto não é festa de estudante que se
preze, de estudante desta época, é uma vergonha ser realizada num centro
acadêmico, só faltam o tio-avô, o gerente do hotel-pensão e o professor de
olhar espichado, o que temos é pouca atitude para completar este quadro de
estupidez e esta falta de tino. Estudantes que falam de tudo o que não vale
nada e nada do que realmente vale tudo, falta aquela decisão que a gente toma
quando se torna homem, aquela ficha que a gente joga como o grande lance das
nossas vidas.
Um estudante deve ser aquele que anda
com um livro de um lado e uma ideia do outro, se livro e ideia se fundirem
tanto melhor, mas o que importa mesmo é modificar estruturas sociais arcaicas,
e não as notas das provas.
O imperador também foi jovem, mas foi um
jovem à moda dele, pois não precisava pensar deste jeito, afinal, era o
imperador. Não tinha que aturar os impostos, a polícia, o trem nem o hotel, e inaugurava
praças e mulheres à vontade, sendo que as praças ainda permanecem intactas e
até hoje conservam a sua placa.
O tio-avô também foi jovem, mas depois
que ficou mais velho vivia metido na intimidade matinal dos lares e seu
universo não passava de uma privada usada durante a noite. Mas ele não farejava
a podridão da vida e a bandeira que empunhava não era a da libertação. Talvez
fosse, mas a dos micróbios.
SEGUE
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