quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018






EXTRAVAGÂNCIAS DE VIAGEM
PROVAÇÕES DE UM ESTUDANTE EM ÉPOCA DE PROVAS

(Conto publicado em 1988 no livro “Coisas – Autobiografia crítica dos anos sessenta” – o original foi escrito em 1967)

 (Final)


 Isto não é vida, mas isto é que é vida! Preocupações pra que? – se o tempo de espera é tão curto e se a cada dia nos aproximamos mais da morte até que este dia chegue sem a gente pressentir. Aí não há quem segure o fio que já está no final do carretel, o imperador passou por isso e também o rei dos hunos, o tio-avô não escapou da sina e eu sei que por mais que me esforce não vou além do estipulado, se é verdade que tudo é mesmo estipulado.
Chegou a hora de voltar para a minha casa, para a minha cidade, mas carona eu não aceito, como não aceito cheques pagáveis em outras praças nem beijos sem complemento, pois algum dia o carro vira de rodas para cima ou a mulher vira de pernas para o alto sem me consultar nem ao dono do cinema e aí não haverá quem prove que foi capotamento, deslizamento na pista ou que estamos catando pulgas pelos caminhos pecaminosos da carne.
Está tarde, ou então é o relógio que anda depressa demais, estou meio bêbado e com fobia de relógio. Deve ser horafobia, ou cronofobia, o fato é que fujo deles enquanto eles continuam balançando ao meu redor, ora pro nobis.
Já disse e repito – carona eu não aceito, apesar das insistências, porque esta estrada já parece um cemitério, a cada viagem de volta pra casa um morto, em cada morto um colega a menos, um jovem a menos que nem sequer morreu lutando. Um diploma a menos, uma anuidade a menos, e o diretor chorando a má sorte dos seus pupilos e do seu bolso, eu é que não entro nessa, pois prefiro ver o diretor feliz embolsando o meu dinheiro. Além do mais, morrer por morrer prefiro morrer de desastre de trem, onde o impacto é muito maior.
Dizem que ninguém morre na véspera, mas isso não é bem verdade, meu tio-avô morreu numa véspera de Natal e estragou a festa da família inteira.
-0-
A praça durante a noite tem os seus encantos. Mas não durante a madrugada.
Eis aqui um economista que jamais economizou, gastei todo o dinheiro na festa do centro acadêmico e perdi o trem mesmo com a passagem comprada. De certo, de nada valeu eu ter ido até a estação porque pelo visto e pelo ouvido, mesmo que eu pudesse comprar outra passagem, as viagens recomeçam somente pela manhã.
Perdi todos os meus colegas de vista, não consigo localizar ninguém, estou só e sem vintém, apenas o céu me faz companhia. E o imperador, o que não deixa de ser uma garantia.
Pelo menos ainda não morri – assim penso – devo estar vivo apesar daquele conhaque de alcatrão e mel, espero não me matarem agora.
Não sei se a lei permite dormir em bancos de praça aos pés do sorriso noturno do imperador, e se ainda permitem é porque a repressão aos vagabundos ainda não chegou a esse ponto.
Posso dormir neste banco duro, de madeira, pintado de verde e ainda assim me sentir um ser superior, não bastasse os cuidados do imperador e este desértico farfalhar de folhas, duvido que alguém possa repetir o meu gesto, mesmo por poucos instantes.
Quero ver a inveja dos invejosos – mesmo tendo sido perseguido, destratado e caçoado, tudo por puro despeito – então aqui vai um repto aos meus inimigos, quero que me invejem agora, deitado na madeira como um fungo, sem guardas ou engraxates por perto. Eu poderia, se quisesse, dormir na delegacia e de lá apanhar o trem com um passe grátis, mas quem é que me garante que eles não irão me torturar à procura de uma verdade que eu não sei, quem me garante que eles não irão me responsabilizar pelo assalto à farmácia na última terça-feira, quem me garante que eles não vão me acusar de mijar na estátua do imperador?
Eu não consegui ir embora esta noite como tencionava porque a faculdade me engolfou, o centro acadêmico me engolfou como se fosse um centro espírita, a noite me engolfou, o conhaque de alcatrão e mel arrancou o que restava dos meus níqueis – e diretor já havia arrancado a maior parte e as minhas tripas arrancaria se pudesse, para economizar a conta do açougue, ele e os seus canibais que são protegidos pela liga da tradição.
Não sobrou uma só moeda para que eu pudesse negociar com o gerente do hotel-pensão um catre para passar a noite, ele, que sofre do estômago e rumina dia e noite a sua azia crônica, talvez por isso não sinta o fedor que emana daquele cubículo, as criadas são velhas e as mulheres das casas das luzes vermelhas, como as bonecas das vitrines de Hamburgo, riem muito porque quando estão sozinhas choram muito.  
Pela manhã eu vou embora de qualquer jeito, mesmo de carona ou até a pé, como um peregrino, pois morto por morto eu já me sinto meio a caminho, agora preciso descansar, tenho que me cobrir de estrelas e roncar baixinho para não perturbar o sono do imperador, isso antes que passe o carro do hospício e me leve para dormir numa cama branca e esmaltada.
Mais um ano e termina toda esta odisseia – vou dormir em outras praças, vou abandonar esta cidade levando diploma e beca, embora sem anel, pois que pedra por pedra basta as que terei nos rins quando a idade se fizer avançada, se chegar até lá, e depois que ultrapassar o derradeiro sinal me bastarão as pedras da sepultura.
E, mesmo graduado como economista, talvez tenha de sair vendendo livros ou vassouras de porta em porta, como um cego, ou hasteando a bandeira amarela da limpeza pública nas residências da periferia em vez de fazer política com eles, fazer a política deles ou rasurar a contabilidade deles.
-0-
A estação ainda está lá, intata, as marquises se inclinam sobre mim e bocejam o bocejo das nove horas, o sol bate fraco e o dinheiro magro tomado emprestado do dono do bar agora dorme dentro do meu bolso.
Estação de águas, estação de trem, estação do ano, vou voltando para as minhas coisas, para a minha cidade.
O trem dá a sua primeira sacudidela e começa a se mover.
Dou um aceno ao imperador.

  


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