quarta-feira, 17 de abril de 2019






RECORRÊNCIA
(Excerto)

          Sonhei que matei meu professor de História. Ou seria meu pai, ou meu parceiro de tranca, meu confidente? Só pode ser mesmo um sonho, pois como é possível a alguém matar uma pessoa morta, a não ser que esta segunda morte seja a definitiva, aquela que cometemos para nos livrar das lembranças desagradáveis?
          O professor bem que merecia, arrogante do alto de sua cátedra, insensível como uma estátua de pedra. Pretensioso, queria que eu bebesse na origem dos fatos. Visionário, queria que eu me interessasse pela Guerra do Peloponeso ou pelo Cerco de Constantinopla, só porque ele próprio não conseguia dormir sem ler as histórias da História Geral à guisa de Bíblia.
          Morreu empanturrado de Fredericos Primeiros e datas solenes.
          Meu pobre pai não teve pecados maiores do que ser indiferente a tudo e a todos, inclusive a mim. Tivesse não existido, não faria a mínima falta, assim eu também não teria existido e o mundo provavelmente teria sido melhor. Lembro, porém, que meu coração se encheu de angústia quando ele morreu após uma rápida enfermidade, angústia que se transformou em revolta ao ver a briga dos irmãos e até de um primo que a gente mal conhecia na disputa de uma herança ridícula – uma casa de vila incrustada num bairro industrial do pior subúrbio da cidade.
          O primo argumentava ter direito à partilha porque não era primo, e sim irmão por parte de pai, apesar de ser filho da irmã da minha mãe, esta uma santa que quase foi à loucura com a denúncia do escândalo!
          Meu parceiro de tranca, que também era meu confidente e interlocutor, morreu como um gato, eletrocutado quando subiu num poste para fazer uma ligação clandestina porque a cerveja estava esquentando na geladeira sem energia – que descanse em paz!
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           É noite e estou ao volante, bêbado ou sonolento, não importa, a avenida é escura e sem sinalização, não sei de onde venho e se vou para algum lugar. De repente sou surpreendido por uma visão fantasiosa de um rosto espelhado no para-brisa, sem trilha sonora, como se alguém estivesse me fazendo companhia, embora eu saiba que estou sozinho.
          A visão me lembra uma pessoa conhecida, meu ex-professor de História, meu incestuoso pai antes de morrer ou meu parceiro de jogo de tranca, meu ex-confidente. O rosto de repente se tinge de sangue, a fisionomia se distorce e cai, deslizando para o lado.
          Entendo que acabei de matar meu ex-professor de História, meu pai ainda vivo ou meu parceiro de jogo de tranca, meu interlocutor.
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          No sonho, clamo pela ajuda do meu professor de História, do meu pai in peccatus ou do meu amigo confidente. Da minha santa mãe ou da minha tia Messalina.
          Mas não encontro resposta.




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